A despedida seria dolorosa o bastante sem o agravante da
preocupação. Um mês de intensa convivência diária, choques e trocas culturais,
boa intenção de ambas as partes. É dolorosamente que escrevo esta postagem de
despedida do Campo e principalmente das crianças. Se por um lado é bonito saber
que a vida na Palestina continua (sempre!), por outro há a tristeza de não
estar lá para ver como estas crianças vão crescer. Se terão um Estado e os
direitos dele advindos, se será um bom Estado, se a paz com os vizinhos, todos,
será finalmente alcançada. Os jornais de todo o mundo que fazem ecoar o termo
“Statehood” (o tornar-se um estado da Palestina) entre as mais variadas
análises políticas e diplomáticas, deixam escapar o sussurro – cada vez mais
alto e real – que vem das ruas da Cisjordânia (e provavelmente de Gaza), dentre
os velhos de manto e lenço, à Arafat,
das bandeirinhas palestinas que agora cobrem as ruas – numa versão local das
fitinhas verde e amarelas da Copa do Mundo no Brasil –, da boca mesma das
crianças que, em sua juventude, misturam valores, direitos e heroísmo com
tragédia: terceira Intifada. Será pacífica e desafiadora como a
primeira? Violenta e trágica como a segunda? Terá consequência na vida de
Deheisha ou das crianças do Karama?
Monumento em Deheisha dedicado aos mártires internacionais da causa palestina. |
A partir do próximo dia 20 de Setembro se inicia a 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas. À semelhança de Israel em 1949 (dois anos
após sua fundação, portanto), a Autoridade Palestina vem através de seu atual
representante, Mahmoud Abbas, pedir – exigir – dos governos do
mundo o que é prometido à décadas, mas nunca dito, o que é apoiado por grandes
e pequenos países, mas nunca efetivado: que a Palestina torne-se finalmente um
estado independente, com as barreiras anteriores a 1967. O resumo do
percurso mais provável, embora incerto, é o seguinte: no dia 20, no discurso de
abertura da Assembleia, é possível que a presidenta Dilma, representando o
Brasil e sua posição diplomática, se refira ao processo palestino de maneira
positiva (será, na minha desinformada opinião, quase como uma mea culpa internacional,
uma retratação do apoio inconsequente do Brasil, como presidente da Assembleia, em 1947, em que se reconheceu a criação do estado de Israel). Em
seguida, se espera que o presidente Abbas discurse no dia 23 quando será
formalizado o pedido palestino de tornar-se membro integrante da Organização
das Nações Unidas. Este pedido para ser atendido tem de passar primeiro pelo
Conselho de Segurança, no qual, se mantiverem-se as posições, deverá ser vetado
pelos Estados Unidos. Como a posição americana sobre Israel é cada vez mais
isolada no cenário internacional, no entanto, e especialmente sensível no Oriente Médio, devido às duas guerras, e à Primavera Árabe,
não seria uma reviravolta inimaginável que o veto seja negociado. O mais
provável, no entanto, é que ele ocorra e que os palestinos tornem-se então para
a Assembleia Geral, onde jogam em casa com apoio da ampla maioria –
excetuando-se Israel, evidentemente, meia duzia de ilhas-estado, como a
Micronésia, fantoches americanos, e possivelmente dois ou três países alinhados
como Canadá e Austrália. O que será pedido, e muito provavelmente aceito nesta
Assembleia, que deverá marcar o ponto alto de vexame internacional recente para
alguns países – a saber, os que votarem contra ou mesmo se absterem como é
possivelmente o caso do Reino Unido -, é o reconhecimento da Palestina como
estado não-membro da ONU. Passariam então de “membro não-estado”, como é mais
ou menos sua situação atual, para “estado não-membro”, do qual o Vaticano é
exemplo. A vitória, ainda sim, seria Palestina, primeiro pela demonstração
maciça de apoio internacional à causa. Segundo porque tornando-se Estado,
abrem-se para a Palestina diversas estâncias da própria ONU – como a Corte Penal Internacional – até agora fechadas
Este percurso diplomático, em sua claridade e abertura
internacional, contrasta com a obscuridade das preparações mais práticas e,
infelizmente, mais efetiva nas vidas, que tomam curso na Palestina e em Israel.
Na visita à Ramalah, que comecei a descrever em postagem anterior,
relatei as principais informações que recebemos de um funcionário da Autoridade
Palestina a respeito da economia palestina dependente, devido à ocupação, da
israelense e do boicote como ferramenta de emancipação. Ao fim da seção
perguntei sobre as consequências do reconhecimento do Estado na economia. Me
surpreendi com a resposta do funcionário do “governo”: não se sabia. A maneira
com que formulou a resposta é exemplar do sentimento que toma forma aos poucos
dos dois lados do muro: independentemente do que aconteça na reunião da
ONU, grandes coisas – e até agora imprevisíveis – vão acontecer.
O sentimento generalizado de revolta que precede a
Intifada está nas ruas há tempos. (Sua fonte é o cotidiano que relembra
constante e sadicamente, grilhão na ferida, o bloqueio da vida, a ofensa
rotineira da dignidade nos Check-Points e no controle da água e da comida, os
cemitérios que engolem vidas jovens e a própria morte que se torna impossível,
em sua desritualização). Houve quem a chamasse no primeiro semestre
deste ano pela internet. Protestos pacíficos têm acontecido nos últimos
meses – como o exemplar Olive Revolution – e a capacidade de mobilização
mostra-se cada vez maior. Com ela, como é costumeiro no conflito, cresce também
a resposta seca, brutal e violenta de Israel. Como vazado em um dos informesdo Wikileaks, o exército de Israel afirma não estar preparado para lidar
com Gandhis. A resposta às demonstrações pacíficas é a milícia típica do
fascismo – me desculpo com os ouvidos mais sensíveis, mas não há outro termo. É
conhecido da mídia internacional que Israel, nos últimos meses, tem treinado
militarmente Settlers e lhes fornecido armas, balas de borracha e bombas de gás
lacrimogênio. Há quem defenda balas de verdade, como citei na postagem
anterior. Quem vive aqui sabe que não há necessidade, os Settlers têm há tempos
armas e munição letal. A milícia, fundada, no duplo sentido, pelo estado
israelense, chegou ao ponto de se internacionalizar. O grupo terrorista
francês JDL, como os denomina Israel e os EUA, chegará a Israel com homens
e mulheres de formação militar para fazer a proteção dos Settlements durante as
esperadas manifestações palestinas. De acordo com a instrução da IDF – forças
armadas israelenses -, serão pintadas linhas no chão que dão aos poucos
direitos aos Settlers: cruzar a primeira linha dá direito à balas de borracha,
a segunda, bombas de gás lacrimogênio. Quantos cruzarão a terceira linha? O
leitor notará que nem entro aqui no mérito da violência indiscriminada – como
os corpos das crianças de Gaza, durante a operação Cast Lead, não nos deixam
esquecer – do exército. Deste se espera uma versão ainda mais brutalizada de
seu comportamento habitual. Que a repressão chegue ao ponto de milícias civis é
sinal por si só do monte de pólvora que aguarda a fagulha da Assembleia da ONU.
Ainda em Ramallah, percebemos uma postura semelhante de
todas as autoridades com que conversamos, gente ligada ao Hamas, gente do
governo e do Fatah, gente da juventude mobilizada e das comissões de negociação
internacional. Já que todas as vias de negociação, como reconhecem os próprios
americanos, foram deliberadamente fechadas por Israel – com sua negação em
congelar a construção de Settlements em território palestino e sua exigência
absurda de ser reconhecido por cidadãos muçulmanos e cristãos autóctones como
estado judeu -, o que coube aos palestinos, menos como ação de audácia do que
como último recurso, foi recorrer ao foro internacional. É também para o
governo uma maneira de exigir do mundo os compromissos afirmados décadas e
décadas a fio, em troca da realização de tratados e exigências. Pois os
palestinos se pacificaram, construíram instituições, tornaram-se interlocutores
respeitados internacionalmente e agora exigem o que lhes foi prometido.
Evidentemente que o pedido é embaraçador. Apesar da nuvem de sangue que já
ensombrece às ruas palestinas, a ocupação, como disse há pouco um
alto-funcionário israelense, não vai acabar por causa de um pedaço de papel. A
situação internacional e diplomática, no entanto, vai. Os atos de agressão e violência, do
ponto de vista jurídico, não serão mais de um estado contra uma “minoria”
oprimida, mas um ataque bélico, de um país – juridicamente fictício, que seja –
contra outro país. Cada violação será uma violação internacional. Cada crime um
crime de guerra. Os cartões de refugiados, num futuro próximo, quem sabe,
transformar-se-ão em passaportes e registros civis. A habilidade mesma de negociar
a paz e a desocupação com Israel se dará não mais entre o ocupante e o
refugiado, mas entre dois estados.
Tumulo de Yasser Arafat que devera, num futuro talvez proximo, ser transportado para Jerusalem, como desejo postumo.
O pedido na ONU não é
unanimidade entre os palestinos. Entre os cidadãos comuns o que se nota
é um compreensível ceticismo em relação a ações internacionais e suas
consequências. É o corpo do Tratado de Oslo, como esperança abortada,
que ainda cheira. Entre alguns acadêmicos, palestinos refugiados e membros do
Hamas, a Autoridade Palestina coloca-se em uma posição delicada com o pedido.
Pois sendo reconhecida como representante do estado palestino, deixaria de
representar os palestinos no exterior. Sua legitimidade também balançaria, pois
tendo sido eleita como representante internacional, se tornaria governo de um
estado. O argumento que me parece principal, no entanto, é o de que o
reconhecimento é a oficialização da solução dos dois estados e, por
consequência, o bloqueio da solução de um estado. Me lembro, alguns meses antes
de vir, de ter lido um artigo de Slavoj Zizek em que se defendia a solução de
um estado. (Entenda-se com isso a convivência pacífica e democrática entre
israelenses e palestinos em um único estado, com o fim do Apartheid e de
direitos desiguais entre cidadãos). Ora, lembro que pensei que a solução
parecia bela e justa, mas impossível de realizar-se considerando a linha
ideológica predominante na política israelense. Hoje, depois de ter vindo para
cá, e de ter experienciado a vida em um Campo de Refugiados que tiveram a terra
roubada e a situação de vida de três gerações danificadas, tenho o sentimento
de que a solução de dois estados não é apenas paliativa, mas também injusta. O
direito de retorno é quase a essência do Campo e mesmo da identidade de jovens
e velhos que moram aqui. A solução de dois estados me parece eliminar na
prática – considerando a continuidade das linhas principais ideológicas em
Israel – este direito.
Minarete do Campo de Refugiados de Aida |
Mesmo tomando isto em consideração, os argumentos a
favor da ida à ONU me parecem, no entanto, mais fortes. Primeiro porque é
necessário o mais rápido possível acabar a situação de tragédia diária que é a
vida palestina. Um estado palestino, com menos de um quinto de suas terras
originais, com recursos roubados que não serão restituídos, com o sangue de
mártires e mártires em sua história, é ainda sim uma solução a esta tragédia. É
uma possibilidade de recomeço, melhor do que a vida sob o conflito,
indefinidamente, vida quem sabe da geração filha destas crianças que eu conheci
aqui. Segundo porque, como bem disseram as autoridades que visitamos, não há outra
alternativa racional de ação – e o tempo, com a construção galopante dos
Settlements, é sempre aliado de Israel. Mas há sim uma outra alternativa,
embora não racional: é aquela da violência desesperada. É a negação a esta
alternativa maldita – que esta geração de autoridades baniu de suas ações – que
darão os países apoiadores da iniciativa palestina na próxima Assembleia da
ONU. O voto negativo, ou de abstenção, será a afirmação indubitável de que se
está com Israel acima de tudo e a infame insinuação e instigação muda daquela
violência então abandonada. Como diz a sábia frase de Nelson Mandela, que
aprendia lendo no Muro da Vergonha: só homens livres podem negociar. É o
direito de negociar que pedem os palestinos. É a este direito que qualquer país
ou cidadão auto-denominado civilizado tem a obrigação de atender – sob a pena
de guardar em si a culpa do desespero futuro.
Esta provavelmente não será a última postagem do blog,
mesmo que eu deixe bela terra em alguns dias. O espaço agregou interesse e
discussão e não há, portanto, motivo para desmanchá-lo. Tentarei trazer
informações dos que ficaram em sua terra e as compartilharei aqui na medida do
possível. Volto de peito e olhos cheios de boas lembranças e de preocupação, e
com estes óculos que me lançam às vistas, ao invés de nomes de cidades e vilas
do papel cinza do jornal, rostos e nomes de crianças, ruas e comidas. O
interesse na Palestina, antes político e intelectual, metamorfoseou-se
belamente na borboleta do cuidado com os que nos são queridos. Ontem tivemos
uma discussão em grupo sobre o que desejamos do futuro. A maior parte das
crianças quer casar, ter filhos (um deles disse dez!) e morar na Palestina.
Acham a melhor coisa daqui o falafel, as pessoas (e algum malandro disse:... os
beijinhos!). Acham o lixo nas ruas e controle de água a pior coisa e se
pudessem mudar alguma coisa construiriam casas em Gaza e distribuiriam
brinquedos para todas as crianças da Palestina. Acham, sem saber como, que a
ocupação um dia vai acabar e que a Palestina vai ser então um lugar feliz.
(Mais feliz ainda, pensei eu). É no interesse então destes meus amigos queridos
que convido o leitor a participar de alguma demostração, a mandar um e-mail ou
dar um telefonema, a acompanhar as notícias, a exigir de si mesmo e do mundo
uma situação de vida melhor para estes que eu esforcei-me por retratar não com
números ou adjetivos, mas com formas e sentimentos e histórias. São pessoas e,
no caso do leitor brasileiro, por acaso
da história e do mundo, pessoas bastante parecidas com a gente. Pessoas que
bebem no seio da vida o leite da resistência – pois não há outra alternativa –
e que resistindo vivem com a maior beleza possível. A Palestina resiste!
PS: Futuramente o blog poderá ficar bloqueado durante um
dia. É quando viajarei de volta e terei
de esconder minha estadia na Palestina para passar sem problemas pelo
aeroporto.
Belo texto! vai dar tudo certo!
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