quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Despedida


 A despedida seria dolorosa o bastante sem o agravante da preocupação. Um mês de intensa convivência diária, choques e trocas culturais, boa intenção de ambas as partes. É dolorosamente que escrevo esta postagem de despedida do Campo e principalmente das crianças. Se por um lado é bonito saber que a vida na Palestina continua (sempre!), por outro há a tristeza de não estar lá para ver como estas crianças vão crescer. Se terão um Estado e os direitos dele advindos, se será um bom Estado, se a paz com os vizinhos, todos, será finalmente alcançada. Os jornais de todo o mundo que fazem ecoar o termo “Statehood” (o tornar-se um estado da Palestina) entre as mais variadas análises políticas e diplomáticas, deixam escapar o sussurro – cada vez mais alto e real – que vem das ruas da Cisjordânia (e provavelmente de Gaza), dentre os velhos de  manto e lenço, à Arafat, das bandeirinhas palestinas que agora cobrem as ruas – numa versão local das fitinhas verde e amarelas da Copa do Mundo no Brasil –, da boca mesma das crianças que, em sua juventude, misturam valores, direitos e heroísmo com tragédia: terceira Intifada. Será pacífica e desafiadora como a primeira? Violenta e trágica como a segunda? Terá consequência na vida de Deheisha ou das crianças do Karama?

Monumento em Deheisha dedicado aos mártires internacionais da causa palestina.

 A partir do próximo dia 20 de Setembro se inicia a 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas. À semelhança de Israel em 1949 (dois anos após sua fundação, portanto), a Autoridade Palestina vem através de seu atual representante, Mahmoud Abbas, pedir – exigir – dos governos do mundo o que é prometido à décadas, mas nunca dito, o que é apoiado por grandes e pequenos países, mas nunca efetivado: que a Palestina torne-se finalmente um estado independente, com as barreiras anteriores a 1967. O resumo do percurso mais provável, embora incerto, é o seguinte: no dia 20, no discurso de abertura da Assembleia, é possível que a presidenta Dilma, representando o Brasil e sua posição diplomática, se refira ao processo palestino de maneira positiva (será, na minha desinformada opinião, quase como uma mea culpa internacional, uma retratação do apoio inconsequente do Brasil, como presidente da Assembleia, em 1947, em que se reconheceu a criação do estado de Israel). Em seguida, se espera que o presidente Abbas discurse no dia 23 quando será formalizado o pedido palestino de tornar-se membro integrante da Organização das Nações Unidas. Este pedido para ser atendido tem de passar primeiro pelo Conselho de Segurança, no qual, se mantiverem-se as posições, deverá ser vetado pelos Estados Unidos. Como a posição americana sobre Israel é cada vez mais isolada no cenário internacional, no entanto, e especialmente sensível no Oriente Médio, devido às duas guerras, e à Primavera Árabe, não seria uma reviravolta inimaginável que o veto seja negociado. O mais provável, no entanto, é que ele ocorra e que os palestinos tornem-se então para a Assembleia Geral, onde jogam em casa com apoio da ampla maioria – excetuando-se Israel, evidentemente, meia duzia de ilhas-estado, como a Micronésia, fantoches americanos, e possivelmente dois ou três países alinhados como Canadá e Austrália. O que será pedido, e muito provavelmente aceito nesta Assembleia, que deverá marcar o ponto alto de vexame internacional recente para alguns países – a saber, os que votarem contra ou mesmo se absterem como é possivelmente o caso do Reino Unido -, é o reconhecimento da Palestina como estado não-membro da ONU. Passariam então de “membro não-estado”, como é mais ou menos sua situação atual, para “estado não-membro”, do qual o Vaticano é exemplo. A vitória, ainda sim, seria Palestina, primeiro pela demonstração maciça de apoio internacional à causa. Segundo porque tornando-se Estado, abrem-se para a Palestina diversas estâncias da própria ONU – como a Corte Penal Internacional – até agora fechadas


Este percurso diplomático, em sua claridade e abertura internacional, contrasta com a obscuridade das preparações mais práticas e, infelizmente, mais efetiva nas vidas, que tomam curso na Palestina e em Israel. Na visita à Ramalah, que comecei a descrever em postagem anterior, relatei as principais informações que recebemos de um funcionário da Autoridade Palestina a respeito da economia palestina dependente, devido à ocupação, da israelense e do boicote como ferramenta de emancipação. Ao fim da seção perguntei sobre as consequências do reconhecimento do Estado na economia. Me surpreendi com a resposta do funcionário do “governo”: não se sabia. A maneira com que formulou a resposta é exemplar do sentimento que toma forma aos poucos dos dois lados do muro: independentemente do que aconteça na reunião da ONU, grandes coisas – e até agora imprevisíveis – vão acontecer.


O sentimento generalizado de revolta que precede a Intifada está nas ruas há tempos. (Sua fonte é o cotidiano que relembra constante e sadicamente, grilhão na ferida, o bloqueio da vida, a ofensa rotineira da dignidade nos Check-Points e no controle da água e da comida, os cemitérios que engolem vidas jovens e a própria morte que se torna impossível, em sua desritualização). Houve quem a chamasse no primeiro semestre deste ano pela internet. Protestos pacíficos têm acontecido nos últimos meses – como o exemplar Olive Revolution – e a capacidade de mobilização mostra-se cada vez maior. Com ela, como é costumeiro no conflito, cresce também a resposta seca, brutal e violenta de Israel. Como vazado em um dos informesdo Wikileaks, o exército de Israel afirma não estar preparado para lidar com Gandhis. A resposta às demonstrações pacíficas é a milícia típica do fascismo – me desculpo com os ouvidos mais sensíveis, mas não há outro termo. É conhecido da mídia internacional que Israel, nos últimos meses, tem treinado militarmente Settlers e lhes fornecido armas, balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. Há quem defenda balas de verdade, como citei na postagem anterior. Quem vive aqui sabe que não há necessidade, os Settlers têm há tempos armas e munição letal. A milícia, fundada, no duplo sentido, pelo estado israelense, chegou ao ponto de se internacionalizar. O grupo terrorista francês JDL, como os denomina Israel e os EUA, chegará a Israel com homens e mulheres de formação militar para fazer a proteção dos Settlements durante as esperadas manifestações palestinas. De acordo com a instrução da IDF – forças armadas israelenses -, serão pintadas linhas no chão que dão aos poucos direitos aos Settlers: cruzar a primeira linha dá direito à balas de borracha, a segunda, bombas de gás lacrimogênio. Quantos cruzarão a terceira linha? O leitor notará que nem entro aqui no mérito da violência indiscriminada – como os corpos das crianças de Gaza, durante a operação Cast Lead, não nos deixam esquecer – do exército. Deste se espera uma versão ainda mais brutalizada de seu comportamento habitual. Que a repressão chegue ao ponto de milícias civis é sinal por si só do monte de pólvora que aguarda a fagulha da Assembleia da ONU.

 
Ainda em Ramallah, percebemos uma postura semelhante de todas as autoridades com que conversamos, gente ligada ao Hamas, gente do governo e do Fatah, gente da juventude mobilizada e das comissões de negociação internacional. Já que todas as vias de negociação, como reconhecem os próprios americanos, foram deliberadamente fechadas por Israel – com sua negação em congelar a construção de Settlements em território palestino e sua exigência absurda de ser reconhecido por cidadãos muçulmanos e cristãos autóctones como estado judeu -, o que coube aos palestinos, menos como ação de audácia do que como último recurso, foi recorrer ao foro internacional. É também para o governo uma maneira de exigir do mundo os compromissos afirmados décadas e décadas a fio, em troca da realização de tratados e exigências. Pois os palestinos se pacificaram, construíram instituições, tornaram-se interlocutores respeitados internacionalmente e agora exigem o que lhes foi prometido. Evidentemente que o pedido é embaraçador. Apesar da nuvem de sangue que já ensombrece às ruas palestinas, a ocupação, como disse há pouco um alto-funcionário israelense, não vai acabar por causa de um pedaço de papel. A situação internacional e diplomática, no entanto,  vai. Os atos de agressão e violência, do ponto de vista jurídico, não serão mais de um estado contra uma “minoria” oprimida, mas um ataque bélico, de um país – juridicamente fictício, que seja – contra outro país. Cada violação será uma violação internacional. Cada crime um crime de guerra. Os cartões de refugiados, num futuro próximo, quem sabe, transformar-se-ão em passaportes e registros civis. A habilidade mesma de negociar a paz e a desocupação com Israel se dará não mais entre o ocupante e o refugiado, mas entre dois estados.

Tumulo de Yasser Arafat que devera, num futuro talvez proximo, ser transportado para Jerusalem, como desejo postumo.

O pedido na ONU não é  unanimidade entre os palestinos. Entre os cidadãos comuns o que se nota é um compreensível ceticismo em relação a ações internacionais e suas consequências. É o corpo do Tratado de Oslo, como esperança abortada, que ainda cheira. Entre alguns acadêmicos, palestinos refugiados e membros do Hamas, a Autoridade Palestina coloca-se em uma posição delicada com o pedido. Pois sendo reconhecida como representante do estado palestino, deixaria de representar os palestinos no exterior. Sua legitimidade também balançaria, pois tendo sido eleita como representante internacional, se tornaria governo de um estado. O argumento que me parece principal, no entanto, é o de que o reconhecimento é a oficialização da solução dos dois estados e, por consequência, o bloqueio da solução de um estado. Me lembro, alguns meses antes de vir, de ter lido um artigo de Slavoj Zizek em que se defendia a solução de um estado. (Entenda-se com isso a convivência pacífica e democrática entre israelenses e palestinos em um único estado, com o fim do Apartheid e de direitos desiguais entre cidadãos). Ora, lembro que pensei que a solução parecia bela e justa, mas impossível de realizar-se considerando a linha ideológica predominante na política israelense. Hoje, depois de ter vindo para cá, e de ter experienciado a vida em um Campo de Refugiados que tiveram a terra roubada e a situação de vida de três gerações danificadas, tenho o sentimento de que a solução de dois estados não é apenas paliativa, mas também injusta. O direito de retorno é quase a essência do Campo e mesmo da identidade de jovens e velhos que moram aqui. A solução de dois estados me parece eliminar na prática – considerando a continuidade das linhas principais ideológicas em Israel – este direito. 

Minarete do Campo de Refugiados de Aida
 Mesmo tomando isto em consideração, os argumentos a favor da ida à ONU me parecem, no entanto, mais fortes. Primeiro porque é necessário o mais rápido possível acabar a situação de tragédia diária que é a vida palestina. Um estado palestino, com menos de um quinto de suas terras originais, com recursos roubados que não serão restituídos, com o sangue de mártires e mártires em sua história, é ainda sim uma solução a esta tragédia. É uma possibilidade de recomeço, melhor do que a vida sob o conflito, indefinidamente, vida quem sabe da geração filha destas crianças que eu conheci aqui. Segundo porque, como bem disseram as autoridades que visitamos, não há outra alternativa racional de ação – e o tempo, com a construção galopante dos Settlements, é sempre aliado de Israel. Mas há sim uma outra alternativa, embora não racional: é aquela da violência desesperada. É a negação a esta alternativa maldita – que esta geração de autoridades baniu de suas ações – que darão os países apoiadores da iniciativa palestina na próxima Assembleia da ONU. O voto negativo, ou de abstenção, será a afirmação indubitável de que se está com Israel acima de tudo e a infame insinuação e instigação muda daquela violência então abandonada. Como diz a sábia frase de Nelson Mandela, que aprendia lendo no Muro da Vergonha: só homens livres podem negociar. É o direito de negociar que pedem os palestinos. É a este direito que qualquer país ou cidadão auto-denominado civilizado tem a obrigação de atender – sob a pena de guardar em si a culpa do desespero futuro.
Esta provavelmente não será a última postagem do blog, mesmo que eu deixe bela terra em alguns dias. O espaço agregou interesse e discussão e não há, portanto, motivo para desmanchá-lo. Tentarei trazer informações dos que ficaram em sua terra e as compartilharei aqui na medida do possível. Volto de peito e olhos cheios de boas lembranças e de preocupação, e com estes óculos que me lançam às vistas, ao invés de nomes de cidades e vilas do papel cinza do jornal, rostos e nomes de crianças, ruas e comidas. O interesse na Palestina, antes político e intelectual, metamorfoseou-se belamente na borboleta do cuidado com os que nos são queridos. Ontem tivemos uma discussão em grupo sobre o que desejamos do futuro. A maior parte das crianças quer casar, ter filhos (um deles disse dez!) e morar na Palestina. Acham a melhor coisa daqui o falafel, as pessoas (e algum malandro disse:... os beijinhos!). Acham o lixo nas ruas e controle de água a pior coisa e se pudessem mudar alguma coisa construiriam casas em Gaza e distribuiriam brinquedos para todas as crianças da Palestina. Acham, sem saber como, que a ocupação um dia vai acabar e que a Palestina vai ser então um lugar feliz. (Mais feliz ainda, pensei eu). É no interesse então destes meus amigos queridos que convido o leitor a participar de alguma demostração, a mandar um e-mail ou dar um telefonema, a acompanhar as notícias, a exigir de si mesmo e do mundo uma situação de vida melhor para estes que eu esforcei-me por retratar não com números ou adjetivos, mas com formas e sentimentos e histórias. São pessoas e, no caso do  leitor brasileiro, por acaso da história e do mundo, pessoas bastante parecidas com a gente. Pessoas que bebem no seio da vida o leite da resistência – pois não há outra alternativa – e que resistindo vivem com a maior beleza possível. A Palestina resiste!


PS: Futuramente o blog poderá ficar bloqueado durante um dia. É quando viajarei de volta e  terei de esconder minha estadia na Palestina para passar sem problemas pelo aeroporto.

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