sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Identidade e deserto



Eu costumava dizer aos camaradas na Alemanha que, ao contrário do que parece, e de uma maneira bastante específica, o brasileiro é um dos povos mais nacionalistas que existe. Talvez não em um sentido declarado, aberto, de superioridade em relação aos outros povos, mas escondido, em segredo compartilhado com os outros brasileiros, como um tipo de nacionalismo negativo. Porque embora seja unanime a opinião de que o estado anda mau, que os políticos são corruptos e que a vida econômica é sempre frágil, o Brasil – nada modestamente auto-declarado pátria mãe de Deus – é o país das maravilhas naturais, da boa música e comida, das festas, da pacificidade entre compatriotas e, talvez principalmente, de um povo gentil. E não que estas coisas todas não tenham nelas um tanto de verdade. Só que o grande problema deste patriotismo de apesares é justamente a crença, que vem junto, de que estes problemas são naturais e incorrigíveis. Como se houvesse um equilíbrio quase cármico entre as mazelas sociais e as benesses naturais e pessoais. Pois como alguém que se pega às vezes com sentimentos nacionalistas deste tipo – não sem alguma vergonha – devo então lançar, quase em forma de desafio, a afirmação de que o povo palestino é ainda mais sedutor, ainda mais ligado à paixões dos sentidos - como o tabaco perfumado da chicha, os doces encharcados de mel, o sabor vigoroso dos produtos naturais e dos temperos – que o povo brasileiro. Que se tais coisas como povo, espírito de nação e outras construções de identidade têm mesmo alguma base na realidade, então o povo palestino é ainda mais hospitaleiro, mais alegre, mais esperançoso na tragédia diária do que o brasileiro, e assim sendo, talvez sofra de maneira ainda mais forte daquele tipo de nacionalismo que explicitei acima. Notei que há aqui um certo tipo de concepção sobre a própria situação que me parece pode ser perigoso para um futuro “live”, nas palavras de um aluno, de que a Palestina seria um lugar completamente feliz sem a ocupação israelense. Não há dúvida de que o primeiro passo necessário para a transformação na qualidade de vida daqui é o fim da ocupação. Só que vindo de um país também sub-desenvolvido – por motivos mais ou menos semelhantes aos da Palestina, ocupação exploratória, corrupção, ter sido joguete de interesses ingleses, etc – sei que demora ainda um tempo até sermos capazes de atender minimamente aos direitos humanos básicos da população. 

 

 Há, entretanto, uma diferença fundamental, fonte da ambiguidade quase insolúvel da identidade palestina, que é a condição – por definição negativa – do exílio, ou, no caso de Deheisha, de ser um refugiado dentro de sua própria terra. Pois se o brasileiro é definido quase que apenas em conjunto com sua terra – desde a já antiga carta de Caminha ao rei de Portugal -, o Palestino é aquele que se define em conjunto com sua terra que é, no entanto, ausente. Assim, poucos momentos atrás quando sai para comprar doces de grãos e mel, em uma lojinha familiar, ouvi a resposta melancólica, a minha pergunta “Como foi a festa do Eid?”,  de que a festa fora mais ou menos. Por quê? Porque a vida aqui não é fácil – aqui significando não Deheisha, como eu fiz questão de perguntar, mas toda a Palestina ocupada. Há um tipo de melancolia que permeia todo o tecido social – pelo que vi nesta curta estadia de dezesseis dias – que é talvez semelhante com a definição freudiana mesma do termo. De um luto que não consegue se realizar devido ao desconhecimento mesmo do objeto perdido. Como se manifesta o desejo de retorno duas gerações depois da expulsão? E como ele se relaciona com o bairrismo e sentimento comunitário fortíssimo que sugere a todo momento que o lugar em que se está é que é o lar? São perguntas que surgem a um estrangeiro e talvez não para quem mora aqui, ou quem sabe, perguntas que para eles têm respostas evidentes.



Três dias atrás aproveitei minha folga para fazer uma longa caminhada do Campo até as proximidade de algo como um deserto. Tivemos de caminhar por quintais sem cerca – com exceção de um Kibutz na entrada mesma do deserto – e por plantações de oliva que exalavam tão fortemente sua essência que sentimentos na boca já o gosto do azeite. O tipo de natureza e paisagem nos arrebatou com um tipo de sublime dificilmente retratável em teorias estéticas. Entre os montes pelos quais caminhávamos, imensos caminhos, canyons, como cavados por algum anfíbio ancestral gigantesco, encontramos restos imemoriais de vida aquática: conchas do mar no meio do deserto. Vimos uma lembre fugindo de nós e, após algumas horas de Sol – que me renderam queimaduras leves que ainda ardem – fugimos também, nutridos pelas experiências óticas, olfativas e quase gustativas da caminhada.

 

Um comentário:

  1. E ae tomaz, ainda não tinha tirado um tempo para ler seu blog, então aproveitei hoje. Cara gostei muito da descrição do estilo de vida dos palestinos que você fez, nos da uma visão diferente do que estamos acostumados a ver pelas noticias de confrontos que vemos sempre nos telejornais ou em matérias na internet, passa a visão do dia a dia das pessoas, como o povo leva sua vida tendo sempre que conviver com o problema da ocupação. Estou curioso para saber mais de como está sendo trabalhar ai com as crianças. Grande abraço.

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