quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A economia sob ocupação e o boicote

O termo BDS - Boycott, Divestment and Sanctions - é conhecido já há algum tempo daqueles que acompanham mais de perto a questão palestina. Sob argumento semelhante ao dos manifestantes anti-Apartheid na África do Sul, a campanha propõe combater o status quo racista e colonialista de Israel através de boicotes, desinvestimento e sanções internacionais a produtos, entidades e organizações israelenses, principalmente aqueles ligados aos Settlements. Um dos exemplos mais ilustrativos desta politica é - para situar a questão em um contexto próximo do leitor - o boicote acadêmico que universidades do mundo iniciam contra universidades israelenses. O exemplo talvez mais representativo do boicote é o dos estudantes e docentes da Universidade de Joanesburgo, na África do Sul. Nesta última semana duas ações seguindo estas premissas ganharam atenção internacional: a brilhante interrupção da Israel Philarmonic Orchestra (uma vez The Palestine Orchestra, que durante sua existência tocou repetidas vezes para as tropas israelenses durantes as seguidas guerras com os vizinhos árabes  no prestigioso Albert Hall durante o BBC Proms e o rompimento de relações diplomáticas, militares e econômicas do governo turco com o governo israelense, após a recusa deste em se desculpar pelo assassinato de oito militantes turcos em águas internacionais na última Flotilha de libertação à Gaza. O boicote de consumo também tem sido eficaz, e de acordo com a organização, mais de um quinto de empresas israelenses já declararam prejuízo devido ao boicote. Aproveito para convidar o leitor a participar do boicote de maneira simples: não comprar produtos que tenham o código de barras iniciado por 729.


Com toda esta campanha e pressão internacional fiquei ingenuamente surpreso ao notar que as lojinhas e mercados palestinos aqui na Cisjordânia estão inundados por produtos não apenas israelenses, mas produzidos em Settlements. Ora, se o mundo se mobiliza aos poucos para bloquear os produtos como é que os próprios palestinos não participam do boicote? Para ilustrar o absurdo dos produtos de Settlements, imaginem que os EUA decidem invadir e ocupar o território brasileiro. Depois de algum tempo de negociação, nós brasileiros decidimos aceitar que os EUA mantenham 75% do nosso território. Ainda sim, os estadunidenses ocupam - “ilegalmente”, por mais absurdo que o termo soe neste contexto - com casas e fábricas o resto dos 25% e como se não bastasse, usam o mercado consumidor brasileiro para vender estes produtos. Esta é a realidade da vida econômica daqui e é tão absurda que mesmo organizações pró-Israel propõem o boicote a produtos de Settlements - embora não, evidentemente, de outros produtos israelenses. Por trás dos argumentos israelenses sobre defesa e segurança se esconde a verdade chocante: a ocupação é sobretudo lucrativa. Com a seguida destruição da indústria palestina e sem controlar as próprias fronteiras – impedindo alternativas aos produtos israelenses - a Cisjordânia, para não falar de Gaza, tornou-se um mercado de 2,5 Milhões de consumidores e, devido a taxa de desemprego de mais 50%, de mão de obra baratíssima para a indústria israelense. A economia palestina, devido à ocupação e a maus tratados internacionais, é dependente e subordinada à economia israelense. O desenvolvimento econômico que permitiria às famílias daqui sair da situação de miséria e de dependência da caridade internacional só será possível com o fim mesmo da ocupação e da independência do estado e da economia palestinas. 
Anteontem, em visita ao coração pulsante da vida política e econômica da Palestina ocupada, Ramallah, tivemos a oportunidade de conversar com funcionários da Autoridade Palestina e soubemos mais sobre a campanha de boicote aos produtos advindos de Settlements. A campanha coincidentemente também se chama Karama, dignidade em árabe. Vale a pena passar pelo site para entender sua motivação e para entender a nova lei que proíbe a venda deste produtos em território palestino:


A reação israelense à campanha foi, não surpreendentemente, a de chamar a campanha de “terrorismo econômico” e a reação “democrática” foi a lei que chocou a comunidade internacional e causou polemica entre os próprios israelenses: de acordo com a “Lei de Prevenção de Danos ao Estado de Israel através de Boicotes”, aprovada pelo Parlamento Israelense em 11 de Julho de 2011, qualquer pessoa, instituição ou país que promover boicotes contra empresas israelenses poderá ser processada pela empresa sem que esta tenha de comprovar perdas. Democracia e liberdade de expressão não são preocupações do governo Netanyahu. Se o boicote, como ferramenta pacifica de combate à ocupação, não é considerada legitima, o que resta aos palestino para reagir? 

PS: Vou tender a dividir as postagens por temas, por isso deixo para a próxima postagem a descrição de Ramallah e do encontro muito instrutivo que tivemos com algumas autoridades palestinas sobre a Assembleia das Nações Unidas do dia 21 que deverá tratar do reconhecimento da Palestina como estado. Nesta reportagem da Al Jazeera há um bom resumo do processo, com opiniões contra e a favor.
PPS: Na noite de ontem nos surpreendemos com crianças e mulheres na rua de onde moro chorando pelas calcadas. Fomos explicados que o pai da família, de apenas 38 anos, morreu ontem de uma infecção simples no pulmão. Sem o equipamento necessário para ser atendido em Belém, fez-se necessária sua transferência para Jerusalém. Tendo a ambulância ficado parada no check-point sem ter autorização para seguir, morreu o pai de 8 filhos. O ocorrido, infelizmente, não é exceção. Aqui uma lista de mortes semelhantes entre 2000 e 2006. Aqui, um relatório da respeitada ONG Palestine Monitor, com números e fatos sobre a consequência do bloqueio nos atendimentos médicos a palestinos. Para exemplificar, entre 2000 e 2006 pelo menos 69 mulheres deram à luz em check-points, sem as condições mínimas de higiene ou segurança. Dos 69 casos, 35 recém-nascidos e 5 mães morreram.
PPS: Atualizo a postagem já mais de dois meses depois da primeira publicação. Gostaria de inserir este vídeo que tem relação com o tema, mas visto do lado israelense. De acordo com os Acordos de Oslo produtos israelenses podem ser vendidos em território palestino, mas não o contrário. Este vídeo mostra uma das reações possíveis quando isto acontece. Espero que a descrição do blog sobre a vida comercial no campo e na Palestina, inundada por todos os lados de produtos israelenses, legais e ilegáis, dêem uma dimensão do tamanho da injustiça e da desigualdade nas relações. O vídeo, entitulado "O que surge da mistura de um turista inglês com os Acordos de Oslo", mostra a reação de um supermercado ao encontrar uma caixinha de leite "árabe" entre seus produtos.




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