terça-feira, 24 de janeiro de 2012

As crianças palestinas: sozinhas e fragilizadas na prisão Al Jalame de Israel

* Tradução da reportagem especial de Harriet Sherwood, em inglês no original entitulado The Palestinian children – alone and bewildered – in Israel's Al Jalame jail, publicado no Domingo, 22 de Janeiro de 2012 na edição online do The Guardian. Todos os direitos reservados à autora e ao jornal.

As crianças palestinas: sozinhas e fragilizadas na prisão Al Jalame de Israel

Matéria especial: O sistema judiciário militar de Israel é acusado de maltratar crianças palestinas presas por jogar pedras

O quarto é só um pouco mais largo do que o colchão fino e sujo que cobre o chão. Atrás de uma parede de concreto baixa está uma privada de se agaxar, da qual o fedor não consegue se dissipar, já que não há janelas na sala. As paredes ásperas de concreto desencorajam apoiar-se, a iluminação constante inibe o sono. A entrega de comida através de uma abertura embaixo da porta é a única maneira de marcar o tempo, de dividir dia e noite.

Esta é a Cela 36, localizada no interior da prisão de Al Jalame, no norte de Israel. É uma das várias celas onde crianças palestinas são trancadas em confinamento solitário por dias ou mesmo semanas. Um jovem de 16 anos afirma que foi mantido na Cela 36 por 65 dias.

A única fuga é a sala de interrogatório, onde as crianças são atadas por pés e mãos à cadeira, enquanto são interrogadas, às vezes por horas.

A maior parte deles é acusada de jogar pedras em soldados ou colonos; alguns, de lançar coquetéis molotov; outros poucos, de infrações mais graves como conexões com organizações militantes ou uso de armas. Eles também são pressionados a ceder informações sobre as atividades e simpatias de seus colegas de classe, parentes e vizinhos.

No começo, a maior parte deles nega as acusações. A maioria diz que são ameaçados, alguns relatam o uso de violência física. Abuso verbal é comum: “Você é um cão, sua mãe é uma puta”. Muitos ficam exaustos pela privação de sono. Dia após dia eles são acorrentados à cadeira e depois mandados de volta para a solitária. No fim, muitos assinam confissões que, posteriormente, eles afirmam terem sido obtidas à força.

Estas afirmações e descrições vêm de depoimentos dados por menores à uma organização de direitos humanos e de entrevistas conduzidas pelo The Guardian. Outras celas nas prisões de Al Jalame e Petah Tivka também são usadas como solitária, mas a cela 36 é a mais frequentemente citada nestes testemunhos.

Entre 500 e 700 crianças palestinas são presas por soldados israelenses todo ano, a maior parte delas acusada de jogar pedras. Desde 2008, a ONG Defence for Children International (DCI) coletou testemunhos prestados por 426 menores detidos no sistema jurídico militar de Israel.

Suas afirmações mostram um padrão de prisões feitas durante a noite, com mãos atadas por amarras de plásticos, vendas, abuso físico/ verbal e ameaças. Aproximadamente 9% de todos aqueles que deram depoimento dizem que foram mantidos em confinamento solitário, embora tenha havido um aumento de 22% os últimos seis meses.

Poucos pais e mães são avisados da localização de seus filhos. Menores raramente são interrogados na presença dos pais e raramente veem um advogado antes ou durante o primeiro interrogatório. Muitos são detidos dentro de Israel, o que torna as visitas familiares muito difícil.

Organizações de direitos humanos dizem que estes padrões de tratamento - que são corroborados por um estudo separado, No Minor Matter, conduzido pelo grupo israelense B’Tselem - violam a convenção internacional sobre os direitos das crianças, que Israel ratificou, e a quarta convenção de Genebra.

Muitas crianças mantém que são inocentes dos crimes de que são acusadas, apesar das confissões de culpa, diz Gerard Horton do DCI. Mas, ele acrescenta, culpa ou inocência não são questões relevantes em relação ao tratamento que sofrem.

Nós não estamos dizendo que infrações não são cometidas. Estamos dizendo que crianças têm direitos legais. Independentemente do que elas são acusadas, elas não devem ser presas no meio da noite em operações aterrorizantes, elas não devem ser amarradas e vendadas dolorosamente às vezes por horas a fio, elas devem ser informadas sobre seu direito ao silêncio e elas devem ter o direito de ter um dos pais presente durante o interrogatório”.

Mohammad Shabrawi da cidade de Tulkarm, na Cisjordânia, foi preso, com 16 anos, no último Janeiro, aproximadamente às 2h30 da manhã. “Quatro soldados entraram no meu quarto e disseram: você tem que vir conosco. Eles não disseram por que, não disseram nada, nem para mim, nem para os meus pais”, ele disse ao The Guardian.

Algemado com uma amarra de plástico e vendado, ele acha que primeiro foi levado a um assentamento, onde ele teve de se ajoelhar - ainda algemado e vendado - por uma hora em uma estada de asfalto durante o frio gelado da noite. Uma segunda jornada terminou aproximadamente às 8 da manhã no centro de detenção de Al Jalame, também conhecido como prisão Kishon, entre os campos próximos à estrada que vai de Nazaré à Haifa.

Depois de uma checagem médica de rotina, Shabrawi foi levado à Cela 36. Lá, ele passou 17 dias na solitária, além dos interrogatórios, e em uma cela parecida, a número 37, ele disse. “Eu estava sozinho, assustado todo o tempo e precisava de alguém para conversar. Eu estava em choque por estar sozinho. Eu estava desesperado para encontrar qualquer um, falar com qualquer um... Eu estava tão chateado que quando eu estava fora [da cela] e via a polícia, eles estavam falando em hebraico e eu não falo hebraico, mas mesmo assim eu estava balançando a cabeça como se eu entendesse. Eu estava desesperado para falar”.

Durante o interrogatório, ele estava amarrado. “Eles me xingaram e ameaçaram prender minha família se eu não confessasse”, ele disse. Ele viu um advogado pela primeira vez 20 dias depois de sua prisão, ele disse, e foi condenado depois de 25 dias. “Eles me acusaram de muitas coisas”, ele disse, acrescentando que nenhuma delas era verdadeira.

Em algum momento, Shabrawi confessou ter sido membro de uma organização proibida e foi sentenciado à 45 dias. Desde sua libertação, ele diz, ele estava “com medo do exército, com medo de ser preso”. Ele disse ter se tornado mais recluso.

Ezz ad-Deen Ali Qadi de Ramallah, que tinha 17 anos quando foi preso em Janeiro passado, descreveu um tratamento similar durante sua prisão e detenção. Ele diz que foi mantido na solitária em Al Jalame por 17 dias nas Celas 36, 37 e 38.

Eu começava a repetir as perguntas dos interrogadores para mim mesmo, me perguntando se era verdade a acusação deles”, ele disse ao The Guardian. “Você sente a pressão da cela. Aí você pensa sobre sua família e você sente que vai perder seu futuro. Você fica sobre uma pressão gigantesca”.

Seu tratamento durante o interrogatório dependia do humor dos seus interrogadores, ele diz. “Se ele está de bom humor, às vezes ele permite que você sente na cadeira sem as algemas. Ou ele pode te forçar a sentar em uma cadeira pequena com um aro de ferro atrás. Daí ele amarra suas mãos no aro e suas pernas nas pernas da cadeiras. Às vezes você fica desse jeito por quatro horas. É doloroso.

Às vezes eles tiram sarro de você. Eles perguntam se você quer água e se você diz que sim eles trazem, mas daí o interrogador é que bebe”.

Ali Qadi não viu seus pais durante os 51 dias em que esteve preso antes do julgamento, ele afirma, e só teve permissão de ver um advogado depois de 10 dias. Ele foi acusado de jogar pedras e de planejar ações militares, depois de condenado, ele foi sentenciado a seis meses de prisão. O The Guardian tem depoimentos de mais cinco jovens que disseram terem sido presos na solitária em Al Jalame e em Petah Tivka. Todos confessaram depois de interrogatório.

A solitária destrói o ânimo de uma criança”, disse Horton. “Crianças dizem que depois de uma semana com esse tratamento, ele confessam simplesmente qualquer coisa para poderem sair da cela”.

A Agência de Segurança Israelense (ISA) - também conhecida como Shin Bet - contou ao The Guardian: “Ninguém que é interrogado, incluindo menores, é mantido em uma cela como medida punitiva ou com o objetivo de obter uma confissão”.

O serviço penitenciário israelense não respondeu à questão específica sobre a solitária, dizendo apenas que “a encarceração de prisioneiros... é submetida a examinação legal”.

Jovens detentos também alegam pesados métodos de interrogação. O The Guardian entrevistou o pai de um menor que cumpre uma pena de 23 meses por jogar pedras em veículos. Ali Odwa, de Azzun, disse que seu filho Yashir, que tinha 14 anos quando foi preso, levou choques elétricos de taser enquanto estava sendo interrogado.

Eu visitei meu filho na prisão. Eu vi marcas de choques elétricos nos seus braços, eles estavam visíveis através do vidro. Eu perguntei a ele se eram de choques elétricos, ele apenas balançou a cabeça. Ele estava com medo de que alguém estivesse ouvindo”, Odwan disse.

O DCI tem depoimentos de três menores acusados de jogar pedras que afirmam terem sido eletrocutados sob interrogatório em 2010.

Outro jovem de Azzun, Sameer Saher, tinha 13 anos quando foi preso às 2 da madrugada. “Um soldado me segurou de cabeça para baixo, me levou para uma janela e disse: ‘Eu quero jogar você desta janela’. Eles me bateram nas pernas, estômago, rosto”, ele disse.

Seus interrogadores o acusaram de atirar pedras e exigiram o nome de seus amigos que também jogaram pedras. Ele foi liberado sem acusações aproximadamente 17 horas depois de sua prisão. Agora, ele diz, ele tem dificuldade de dormir por medo “de que eles vão vir de noite e me prender”.

Em resposta às questões sobre maus tratos, incluindo choques elétricos, a ISA disse: “As afirmações de que jovens palestinos foram sujeitos à técnicas de interrogação que incluem espancamento, longos períodos algemados, ameaças, truques, abuso verbal, humilhação, isolamento e impedimento de sono não tem absolutamente nenhuma base... Investigadores agem de acordo com a lei e com determinações inequívocas que proíbem tais ações”.

O The Guardian também viu raras gravações audiovisuais do interrogatório de dois meninos, de 14 e 15 anos, do vilarejo de Nabi Saleh, local onde ocorrem semanalmente protestos contra os colonos dos arredores. Muitos estão visivelmente exaustos depois de serem presos no meio da noite. Seus interrogatórios, que começaram perto das 9:30 da manhã, duraram quatro e cinco horas.

Em nenhum dos casos estavam presentes advogados durante o interrogatório.

A lei militar israelense foi aplicada na Cisjordânia desde que Israel ocupou os territórios, mais de 44 anos atrás. Desde então, mais de 700.000 homens, mulheres e crianças palestinas foram presas sob ordens militares.

De acordo com a lei militar 1651, a idade de responsabilidade criminal é 12 anos, e crianças mais novas do que 14 anos enfrentam um máximo de seis meses de prisão.

No entanto, crianças de 14 e 15 anos poderiam, em teoria, ser sentenciadas a até 20 anos por jogar objetos em um veículo em movimento com a intenção de ferir. Na prática, a maior parte das sentenças vão de duas semanas a 10 meses, de acordo com o DCI.

Em Setembro de 2009, uma corte militar especial para jovens foi criada. Ela se reúne em Ofer, uma prisão militar fora de Jerusalém, duas vezes por semana. Menores são trazidos à corte com as pernas amarradas, algemas e vestindo uniformes marrons de prisioneiro. Os procedimentos são em hebraico com a tradução intermitente de soldados que falam árabe.

O serviço penitenciário israelense disse ao The Guardian que o uso de amarras em locais públicos era permitido nos casos em que “há uma preocupação razoável de que o prisioneiro possa escapar, causar dano à propriedade ou a pessoas, ou causará dano à evidência ou tentará destruir evidências”.

O The Guardian testemunhou um caso neste mês no qual dois garotos, um de 15 e outro de 17 anos, admitiram terem entrado ilegalmente em Israel, terem lançado coquetéis molotov e pedras, terem iniciado um incêndio que causou dano extensivo e terem vandalizado propriedade. A acusação pediu por uma sentença que refletisse as “razões nacionalistas” e que agisse como um bloqueador.

O garoto mais velho foi sentenciado a 33 meses de prisão, o mais novo a 26 meses. Ambos foram sentenciados a um adicional de 24 meses e foram multados em 10.000 shekels (R$4.600). Se o pagamento não for efetuado, haverá um adicional de 10 meses de prisão.

Muitas delegações parlamentares britânicas testemunharam audições infantis em Ofer nos últimos anos. Alf Dubs relatou à Casa dos Lordes, em Maio passado, dizendo: “Nós vimos um menino de 14 anos e um de 15 anos, um deles estava chorando, os dois pareciam absolutamente fragilizados... Eu não acredito que este processo humilhante represente justiça. Eu acredito que a maneira com que estas jovens pessoas são tratadas é já um obstáculo para que Israel alcance um relacionamento pacífico com o povo palestino”.

Lisa Nandy, membro do parlamento britânico por Wigan, testemunhou o julgamento de um jovem atado de 14 anos em Ofer no mês passado e achou aflitiva a experiência. “Em cinco minutos ele foi julgado culpado de jogar pedras e foi sentenciado a nove meses. Foi chocante ver uma criança passar por este processo. É difícil ver como uma solução [política] pode ser alcançada quando jovens estão sendo tratadas desta maneira. Eles terminam com pouquíssima esperança no seu futuro e com muito ódio por seu tratamento”.

Horton disse que uma confissão de culpa era “a maneira mais rápida de sair do sistema”. Se a criança disser que sua confissão foi forçada, “isso lhes permite uma defesa legal, mas a fiança é negada, eles irão permanecer em detenção mais tempo do que se eles tivessem simplesmente confessado”.

Uma opinião de especialista, escrita por Graciela Carmon, psiquiatra infantil e membro do Physicians for Human Rights, em maio de 2011, disse que crianças são particularmente vulneráveis a fornecer falsas confissões sob coerção.

Embora alguns dos detentos entendam que fornecer uma confissão, apesar de sua inocência, terá repercussões negativas no futuro, eles confessam mesmo assim, já que a angústia física e/ou psicológica imediata que eles sentem se mostra mais forte do que as implicações futuras, sejam elas quais forem”.

Quase todos os casos documentados pelo DCI terminaram em confissão de culpa e aproximadamente três quartos dos menores culpados foram transferidos para prisões dentro de Israel. Isto infringe o artigo 76 da quarta convenção de Genebra, que determina que crianças e adultos dos territórios ocupados sejam detidos dentro do território.

As Forças Armadas de Israel (IDF), responsáveis pelas prisões na Cisjordânia e pelo sistema penal militar, disseram mês passado que o sistema penal militar era “embasado em um cometimento com a asseguração dos direitos do acusado, imparcialidade judicial e uma ênfase na prática das normas legais internacionais em situações incrivelmente complexas e perigosas”.

A ISA disse que seus empregados agiram de acordo com a lei e que os presos tiveram todos os direitos que lhes são cabíveis, incluindo o direito a aconselhamento legal e visitas da Cruz Vermelha. “A ISA nega categoricamente todas as afirmações em relação ao interrogatório de menores. Na verdade, a verdade é o completo oposto - as especificações da ISA garantem proteções especiais a menores, necessárias devido a sua idade”.

Mark Regev, porta-voz do primeiro ministro israelense, Binyamin Netanyahu, disse ao Guardian: “Se detentos acreditam que estão sendo maltratados, especialmente em caso de menores... é muito importante que estas pessoas, ou pessoas os representando, venham e tragam estas questões a público. O teste de uma democracia é a maneira como você trata as pessoas encarceradas, pessoas na cadeia e, especialmente, crianças nesta situação”.

Jogar pedras, ele acrescenta, era uma atividade perigosa que resultou nas morte de um pai e de um filho israelenses no ano passado.

Jogar pedras, lançar coquetéis molotov e outras formas de violência são inaceitáveis e as autoridades de segurança têm de terminar com estas ações quando elas acontecem”.

Grupos defensores dos direitos humanos estão preocupados com o impacto a longo prazo da detenção de palestinos menores de idade. Algumas crianças inicialmente mostram um pouco de orgulho, acreditado que aquilo foi um rito de passagem, disse Horton. “Mas quando você senta com eles por uma hora ou mais, sob este verniz de orgulho está uma criança consideravelmente traumatizada”. Muitos deles, ele diz, nunca mais querem ver um soldado ou chegar perto de um posto de verificação. Ele acha que o sistema funciona como um bloqueador? “Sim, acho que ele funciona”.

De acordo com Nader Abu Amsha, o diretor do YMCA em Beit Sahour, próximo à Belém, que mantém um programa de reabilitação para jovens, “as famílias pensam que quando a criança é liberta, este é o fim do problema. Nós dizemos a eles que este é o começo do problema”.

Após a detenção, muitas crianças exibem sintomas de trauma: pesadelos, desconfiança dos outros, medo do futuro, sentimentos de desesperança e desvalorização, comportamento obsessivo-compulsivo, incontinência urinária, agressão, reclusão e falta de motivação.

As autoridades israelenses deveriam considerar os efeitos a longo prazo, diz Abu Amsha. “Eles não dão atenção à maneira com que isto pode fazer continuar o ciclo de violência, com que isso pode aumentar o ódio. Estas crianças saem do processo com muita raiva. Alguns deles sentem a necessidade de vingança.

Você vê crianças que estão totalmente destruídas. É doloroso ver a dor destas crianças, ver o quanto elas estão exauridas pelo sistema israelense”.


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Em seguida a esta reportagem, foi postado no portal do The Guardian, um vídeo cedido pela ONG B'Tselem, com a seguinte entrevista, dada por dois jovens palestinos. 

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