quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Despedida


 A despedida seria dolorosa o bastante sem o agravante da preocupação. Um mês de intensa convivência diária, choques e trocas culturais, boa intenção de ambas as partes. É dolorosamente que escrevo esta postagem de despedida do Campo e principalmente das crianças. Se por um lado é bonito saber que a vida na Palestina continua (sempre!), por outro há a tristeza de não estar lá para ver como estas crianças vão crescer. Se terão um Estado e os direitos dele advindos, se será um bom Estado, se a paz com os vizinhos, todos, será finalmente alcançada. Os jornais de todo o mundo que fazem ecoar o termo “Statehood” (o tornar-se um estado da Palestina) entre as mais variadas análises políticas e diplomáticas, deixam escapar o sussurro – cada vez mais alto e real – que vem das ruas da Cisjordânia (e provavelmente de Gaza), dentre os velhos de  manto e lenço, à Arafat, das bandeirinhas palestinas que agora cobrem as ruas – numa versão local das fitinhas verde e amarelas da Copa do Mundo no Brasil –, da boca mesma das crianças que, em sua juventude, misturam valores, direitos e heroísmo com tragédia: terceira Intifada. Será pacífica e desafiadora como a primeira? Violenta e trágica como a segunda? Terá consequência na vida de Deheisha ou das crianças do Karama?

Monumento em Deheisha dedicado aos mártires internacionais da causa palestina.

 A partir do próximo dia 20 de Setembro se inicia a 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas. À semelhança de Israel em 1949 (dois anos após sua fundação, portanto), a Autoridade Palestina vem através de seu atual representante, Mahmoud Abbas, pedir – exigir – dos governos do mundo o que é prometido à décadas, mas nunca dito, o que é apoiado por grandes e pequenos países, mas nunca efetivado: que a Palestina torne-se finalmente um estado independente, com as barreiras anteriores a 1967. O resumo do percurso mais provável, embora incerto, é o seguinte: no dia 20, no discurso de abertura da Assembleia, é possível que a presidenta Dilma, representando o Brasil e sua posição diplomática, se refira ao processo palestino de maneira positiva (será, na minha desinformada opinião, quase como uma mea culpa internacional, uma retratação do apoio inconsequente do Brasil, como presidente da Assembleia, em 1947, em que se reconheceu a criação do estado de Israel). Em seguida, se espera que o presidente Abbas discurse no dia 23 quando será formalizado o pedido palestino de tornar-se membro integrante da Organização das Nações Unidas. Este pedido para ser atendido tem de passar primeiro pelo Conselho de Segurança, no qual, se mantiverem-se as posições, deverá ser vetado pelos Estados Unidos. Como a posição americana sobre Israel é cada vez mais isolada no cenário internacional, no entanto, e especialmente sensível no Oriente Médio, devido às duas guerras, e à Primavera Árabe, não seria uma reviravolta inimaginável que o veto seja negociado. O mais provável, no entanto, é que ele ocorra e que os palestinos tornem-se então para a Assembleia Geral, onde jogam em casa com apoio da ampla maioria – excetuando-se Israel, evidentemente, meia duzia de ilhas-estado, como a Micronésia, fantoches americanos, e possivelmente dois ou três países alinhados como Canadá e Austrália. O que será pedido, e muito provavelmente aceito nesta Assembleia, que deverá marcar o ponto alto de vexame internacional recente para alguns países – a saber, os que votarem contra ou mesmo se absterem como é possivelmente o caso do Reino Unido -, é o reconhecimento da Palestina como estado não-membro da ONU. Passariam então de “membro não-estado”, como é mais ou menos sua situação atual, para “estado não-membro”, do qual o Vaticano é exemplo. A vitória, ainda sim, seria Palestina, primeiro pela demonstração maciça de apoio internacional à causa. Segundo porque tornando-se Estado, abrem-se para a Palestina diversas estâncias da própria ONU – como a Corte Penal Internacional – até agora fechadas


Este percurso diplomático, em sua claridade e abertura internacional, contrasta com a obscuridade das preparações mais práticas e, infelizmente, mais efetiva nas vidas, que tomam curso na Palestina e em Israel. Na visita à Ramalah, que comecei a descrever em postagem anterior, relatei as principais informações que recebemos de um funcionário da Autoridade Palestina a respeito da economia palestina dependente, devido à ocupação, da israelense e do boicote como ferramenta de emancipação. Ao fim da seção perguntei sobre as consequências do reconhecimento do Estado na economia. Me surpreendi com a resposta do funcionário do “governo”: não se sabia. A maneira com que formulou a resposta é exemplar do sentimento que toma forma aos poucos dos dois lados do muro: independentemente do que aconteça na reunião da ONU, grandes coisas – e até agora imprevisíveis – vão acontecer.


O sentimento generalizado de revolta que precede a Intifada está nas ruas há tempos. (Sua fonte é o cotidiano que relembra constante e sadicamente, grilhão na ferida, o bloqueio da vida, a ofensa rotineira da dignidade nos Check-Points e no controle da água e da comida, os cemitérios que engolem vidas jovens e a própria morte que se torna impossível, em sua desritualização). Houve quem a chamasse no primeiro semestre deste ano pela internet. Protestos pacíficos têm acontecido nos últimos meses – como o exemplar Olive Revolution – e a capacidade de mobilização mostra-se cada vez maior. Com ela, como é costumeiro no conflito, cresce também a resposta seca, brutal e violenta de Israel. Como vazado em um dos informesdo Wikileaks, o exército de Israel afirma não estar preparado para lidar com Gandhis. A resposta às demonstrações pacíficas é a milícia típica do fascismo – me desculpo com os ouvidos mais sensíveis, mas não há outro termo. É conhecido da mídia internacional que Israel, nos últimos meses, tem treinado militarmente Settlers e lhes fornecido armas, balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. Há quem defenda balas de verdade, como citei na postagem anterior. Quem vive aqui sabe que não há necessidade, os Settlers têm há tempos armas e munição letal. A milícia, fundada, no duplo sentido, pelo estado israelense, chegou ao ponto de se internacionalizar. O grupo terrorista francês JDL, como os denomina Israel e os EUA, chegará a Israel com homens e mulheres de formação militar para fazer a proteção dos Settlements durante as esperadas manifestações palestinas. De acordo com a instrução da IDF – forças armadas israelenses -, serão pintadas linhas no chão que dão aos poucos direitos aos Settlers: cruzar a primeira linha dá direito à balas de borracha, a segunda, bombas de gás lacrimogênio. Quantos cruzarão a terceira linha? O leitor notará que nem entro aqui no mérito da violência indiscriminada – como os corpos das crianças de Gaza, durante a operação Cast Lead, não nos deixam esquecer – do exército. Deste se espera uma versão ainda mais brutalizada de seu comportamento habitual. Que a repressão chegue ao ponto de milícias civis é sinal por si só do monte de pólvora que aguarda a fagulha da Assembleia da ONU.

 
Ainda em Ramallah, percebemos uma postura semelhante de todas as autoridades com que conversamos, gente ligada ao Hamas, gente do governo e do Fatah, gente da juventude mobilizada e das comissões de negociação internacional. Já que todas as vias de negociação, como reconhecem os próprios americanos, foram deliberadamente fechadas por Israel – com sua negação em congelar a construção de Settlements em território palestino e sua exigência absurda de ser reconhecido por cidadãos muçulmanos e cristãos autóctones como estado judeu -, o que coube aos palestinos, menos como ação de audácia do que como último recurso, foi recorrer ao foro internacional. É também para o governo uma maneira de exigir do mundo os compromissos afirmados décadas e décadas a fio, em troca da realização de tratados e exigências. Pois os palestinos se pacificaram, construíram instituições, tornaram-se interlocutores respeitados internacionalmente e agora exigem o que lhes foi prometido. Evidentemente que o pedido é embaraçador. Apesar da nuvem de sangue que já ensombrece às ruas palestinas, a ocupação, como disse há pouco um alto-funcionário israelense, não vai acabar por causa de um pedaço de papel. A situação internacional e diplomática, no entanto,  vai. Os atos de agressão e violência, do ponto de vista jurídico, não serão mais de um estado contra uma “minoria” oprimida, mas um ataque bélico, de um país – juridicamente fictício, que seja – contra outro país. Cada violação será uma violação internacional. Cada crime um crime de guerra. Os cartões de refugiados, num futuro próximo, quem sabe, transformar-se-ão em passaportes e registros civis. A habilidade mesma de negociar a paz e a desocupação com Israel se dará não mais entre o ocupante e o refugiado, mas entre dois estados.

Tumulo de Yasser Arafat que devera, num futuro talvez proximo, ser transportado para Jerusalem, como desejo postumo.

O pedido na ONU não é  unanimidade entre os palestinos. Entre os cidadãos comuns o que se nota é um compreensível ceticismo em relação a ações internacionais e suas consequências. É o corpo do Tratado de Oslo, como esperança abortada, que ainda cheira. Entre alguns acadêmicos, palestinos refugiados e membros do Hamas, a Autoridade Palestina coloca-se em uma posição delicada com o pedido. Pois sendo reconhecida como representante do estado palestino, deixaria de representar os palestinos no exterior. Sua legitimidade também balançaria, pois tendo sido eleita como representante internacional, se tornaria governo de um estado. O argumento que me parece principal, no entanto, é o de que o reconhecimento é a oficialização da solução dos dois estados e, por consequência, o bloqueio da solução de um estado. Me lembro, alguns meses antes de vir, de ter lido um artigo de Slavoj Zizek em que se defendia a solução de um estado. (Entenda-se com isso a convivência pacífica e democrática entre israelenses e palestinos em um único estado, com o fim do Apartheid e de direitos desiguais entre cidadãos). Ora, lembro que pensei que a solução parecia bela e justa, mas impossível de realizar-se considerando a linha ideológica predominante na política israelense. Hoje, depois de ter vindo para cá, e de ter experienciado a vida em um Campo de Refugiados que tiveram a terra roubada e a situação de vida de três gerações danificadas, tenho o sentimento de que a solução de dois estados não é apenas paliativa, mas também injusta. O direito de retorno é quase a essência do Campo e mesmo da identidade de jovens e velhos que moram aqui. A solução de dois estados me parece eliminar na prática – considerando a continuidade das linhas principais ideológicas em Israel – este direito. 

Minarete do Campo de Refugiados de Aida
 Mesmo tomando isto em consideração, os argumentos a favor da ida à ONU me parecem, no entanto, mais fortes. Primeiro porque é necessário o mais rápido possível acabar a situação de tragédia diária que é a vida palestina. Um estado palestino, com menos de um quinto de suas terras originais, com recursos roubados que não serão restituídos, com o sangue de mártires e mártires em sua história, é ainda sim uma solução a esta tragédia. É uma possibilidade de recomeço, melhor do que a vida sob o conflito, indefinidamente, vida quem sabe da geração filha destas crianças que eu conheci aqui. Segundo porque, como bem disseram as autoridades que visitamos, não há outra alternativa racional de ação – e o tempo, com a construção galopante dos Settlements, é sempre aliado de Israel. Mas há sim uma outra alternativa, embora não racional: é aquela da violência desesperada. É a negação a esta alternativa maldita – que esta geração de autoridades baniu de suas ações – que darão os países apoiadores da iniciativa palestina na próxima Assembleia da ONU. O voto negativo, ou de abstenção, será a afirmação indubitável de que se está com Israel acima de tudo e a infame insinuação e instigação muda daquela violência então abandonada. Como diz a sábia frase de Nelson Mandela, que aprendia lendo no Muro da Vergonha: só homens livres podem negociar. É o direito de negociar que pedem os palestinos. É a este direito que qualquer país ou cidadão auto-denominado civilizado tem a obrigação de atender – sob a pena de guardar em si a culpa do desespero futuro.
Esta provavelmente não será a última postagem do blog, mesmo que eu deixe bela terra em alguns dias. O espaço agregou interesse e discussão e não há, portanto, motivo para desmanchá-lo. Tentarei trazer informações dos que ficaram em sua terra e as compartilharei aqui na medida do possível. Volto de peito e olhos cheios de boas lembranças e de preocupação, e com estes óculos que me lançam às vistas, ao invés de nomes de cidades e vilas do papel cinza do jornal, rostos e nomes de crianças, ruas e comidas. O interesse na Palestina, antes político e intelectual, metamorfoseou-se belamente na borboleta do cuidado com os que nos são queridos. Ontem tivemos uma discussão em grupo sobre o que desejamos do futuro. A maior parte das crianças quer casar, ter filhos (um deles disse dez!) e morar na Palestina. Acham a melhor coisa daqui o falafel, as pessoas (e algum malandro disse:... os beijinhos!). Acham o lixo nas ruas e controle de água a pior coisa e se pudessem mudar alguma coisa construiriam casas em Gaza e distribuiriam brinquedos para todas as crianças da Palestina. Acham, sem saber como, que a ocupação um dia vai acabar e que a Palestina vai ser então um lugar feliz. (Mais feliz ainda, pensei eu). É no interesse então destes meus amigos queridos que convido o leitor a participar de alguma demostração, a mandar um e-mail ou dar um telefonema, a acompanhar as notícias, a exigir de si mesmo e do mundo uma situação de vida melhor para estes que eu esforcei-me por retratar não com números ou adjetivos, mas com formas e sentimentos e histórias. São pessoas e, no caso do  leitor brasileiro, por acaso da história e do mundo, pessoas bastante parecidas com a gente. Pessoas que bebem no seio da vida o leite da resistência – pois não há outra alternativa – e que resistindo vivem com a maior beleza possível. A Palestina resiste!


PS: Futuramente o blog poderá ficar bloqueado durante um dia. É quando viajarei de volta e  terei de esconder minha estadia na Palestina para passar sem problemas pelo aeroporto.

domingo, 11 de setembro de 2011

Hebron


Settlements


Antes começar a relatar a curta viagem de apenas algumas horas que fizemos hoje à Hebron, convido o leitor a ler esta reportagem do jornal israelense Haaretz. A ideia do congressista é a de aplicar a lei “Shai Dromi” - uma espécie de lei do velho oeste, já aprovada pelo governo israelense, que permite a qualquer cidadão atirar em pessoas que “invadam” sua propriedade - à manifestações pacificas e demonstrações nas ruas dos Settlements que ativistas palestinos estão planejando após a reunião das Nações Unidas que deverá reconhecer a Palestina como um estado.

Andar pelas ruas de Hebron é uma experiência semelhante a de observar nas beiras das estradas e cidades árabes o surgimento imponente, bárbaro na arquitetura, dos Settlements. Fechados como condomínios e protegidos por tropas e mais de tropas de soldados e torres de vigilância, sua aparência é antes intimidadora do que defensiva. Gigantescos e idênticos eles se espalham progressivamente pelos picos das colinas ocupadas da Cisjordânia. Sua altura e aparência lembra plantações de eucalipto que ocupam o solo de antigas matas tropicais. Do posto alto observam a vida nas estradas e cidades sem, no entanto, participar delas. As únicas curvas na arquitetura são do Muro da Vergonha que para protegê-las aprisiona a vida árabe em guetos. Pois a impressão de, apesar de ocupar um espaço maior, ser ainda sim vigiado e controlado por uma minoria, é a mesma que se tem caminhando pela rua principal do mercado velho de Hebron, da qual os segundo andares foram todos desalojados - legal ou ilegalmente, através de violência, incêndios ou ameaças - por medidas de segurança. A maior parte permanece desocupada, alguns deles, de quarteirão em quarteirão, são ocupadas pelas onipresentes torres de segurança israelenses. Sobre o mercado grades de alumínio tornam a rua numa espécie de gaiola. Sua função, quase inacreditável, é proteger os pedestres e as lojas de lixo jogado propositalmente pelos Settlers que moram sobre o mercado. Esta triste reportagem ilustra bem a situação.



Alguns números sobre a cidade devem dar ao leitor uma impressão da vida sob ocupação. Hebron, a segunda cidade mais populosa da Cisjordânia, contava com uma população de 163.146 em 2007. Destes, apenas 500 são Settlers judeus. O número de soldados, no entanto, para proteger esta pequena parte da população é surpreendente: 4000, quase dez soldados para cada Settler, portanto. Esta presença maciça, que controla a vida de dezenas de milhares de palestinos – misturada com o ódio ideológico que é o ar que se respira na Cisjordânia – facilita a constante ocorrência de abusos. Quando estivemos lá conhecemos uma senhora que fazia parte de uma ONG que tinha como função de, além de serem observadores internacionais, acompanhar crianças palestinas à escola. Elas têm de ser acompanhadas porque podem ser alvo de Settlers ou dos soldados no meio do caminho. 

H1 controlada pela polícia palestina, H2 pelos soldados israelenses


Abaixo posto o trailer do filme "Bem-vindo a Hebron", ele explicita por si só mais do que qualquer lista de eventos que eu possa transcrever aqui. É necessário um adendo, no entanto. Os Settlers, me parece, não são representativos da maioria da população israelense. Este  tipo de comportamento extremo é típico de uma certa camada minoritária, ultra-religiosa de israelenses que se voluntariam para habitar esta região por certas crenças religiosas e políticas. Minoritária, ela não é menos atuante e influente, no entanto. Prova disso é o número de soldados enviados pelo governo para a cidade. Parece um tipo de miniatura da própria política israelense: se por um lado é improvável que a maioria da população apoie a ocupação e o apartheid da maneira desumana com que eles ocorrem, por outro lado, seja por abstenção, auto-imposta ignorância ou abandono da política aos políticos, é essa minoria extrema que acaba por chegar ao governo e a tomar as terríveis decisões que tomam. A responsabilidade, evidentemente, é compartilhada entre todos. Os Settlers de Hebron são os representantes legítimos da atual política israelense e, através dela, da população que a legitima:



Caminhando pela rua principal do mercado, que se esvazia a medida que se aproxima da área israelense, chegamos ao seu fim que dá num check-point. Viramos a esquerda e passamos por um segundo check-point em que fui parado e perguntado "se eu era judeu". Visivelmente sem qualquer treinamento de identificação de passaportes, me deixou passar depois, sem pedir o documento da minha outra colega. Nosso guia árabe teve, evidentemente, de tirar o cinto e responder a algumas perguntas. Caminhamos mais cem passos até a entrada do Túmulo dos Patriarcas, onde passamos por mais um detector de metais e onde fomos interrogados novamente por soldados israelenses. Tentei me colocar na posição dos árabes que vêm algumas vezes ao dia à mesquita e que têm de passar por três check-points em menos de 200 metros para exercer o direito de rezar.


Algo triste de se observar é a divisão que foi feita do templo. Pois sendo local sagrado para as três grandes religiões, ele teve, no passado, cultos diversos ocorrendo no mesmo local. Desde o inicio do século passado, no entanto, como consequência da imigração sionista, os conflitos se iniciaram com massacres horríveis de judeus e muçulmanos. O peso da atmosfera me fez refletir sobre a possibilidade da religião – e principalmente  de religiões tão pacificas e caritativas como o Islã e o Judaísmo – nestas circunstâncias de ódio evidente. Observando a tumba de Abraão – separado por grades e um vidro blindado – vi um jovem judeu que nos observava. Como duas religiões compartilham um templo, a sacralidade do corpo de Abraão e Sara e Isaac e Rebeca e Jacó e Leia, não podem compartilhar um pais? Quando vai soprar o vento que levará estas grades, estes ódios, estas falsas diferenças para longe?

Tumba de Abraao

Túmulo dos Patriarcas


Termino a pequena postagem de hoje com a promessa de tratar na próxima postagem do processo de reconhecimento do estado palestino na Assembléia das Nações Unidas de Setembro. Também com o peito apertado pelo extremismo da situação e da sombra que as consequências desta reunião, sejam elas quais forem, já lançam sobre a vida palestina. O artigo que sugeri no começo desta postagem é representante disto. A pequena descrição que tentei esboçar da convivência entre palestinos e Settlers marca minha posição sobre a justeza da iniciativa.


PS: Durante a viagem de ida me lembrei que já tinha lido algo em referencia a Hebron nos jornais. Na viagem de volta me lembrei que se tratava deste vídeo, que posto abaixo, de soldados israelenses dançando ao som de música americana. Minha idéia na época era de que as duas coisas caminhavam juntas, a dominação ideológica da indústria cultural e a ocupação. Hoje, em um percurso subjetivo de mais para se argumentar, me lembro dos versos de Paul Celan: "ihr andern spielt weiter zum Tanz auf". Mudam os atores, quem toca, quem ouve, quem dança. A fuga, no entanto, continua a mesma.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A economia sob ocupação e o boicote

O termo BDS - Boycott, Divestment and Sanctions - é conhecido já há algum tempo daqueles que acompanham mais de perto a questão palestina. Sob argumento semelhante ao dos manifestantes anti-Apartheid na África do Sul, a campanha propõe combater o status quo racista e colonialista de Israel através de boicotes, desinvestimento e sanções internacionais a produtos, entidades e organizações israelenses, principalmente aqueles ligados aos Settlements. Um dos exemplos mais ilustrativos desta politica é - para situar a questão em um contexto próximo do leitor - o boicote acadêmico que universidades do mundo iniciam contra universidades israelenses. O exemplo talvez mais representativo do boicote é o dos estudantes e docentes da Universidade de Joanesburgo, na África do Sul. Nesta última semana duas ações seguindo estas premissas ganharam atenção internacional: a brilhante interrupção da Israel Philarmonic Orchestra (uma vez The Palestine Orchestra, que durante sua existência tocou repetidas vezes para as tropas israelenses durantes as seguidas guerras com os vizinhos árabes  no prestigioso Albert Hall durante o BBC Proms e o rompimento de relações diplomáticas, militares e econômicas do governo turco com o governo israelense, após a recusa deste em se desculpar pelo assassinato de oito militantes turcos em águas internacionais na última Flotilha de libertação à Gaza. O boicote de consumo também tem sido eficaz, e de acordo com a organização, mais de um quinto de empresas israelenses já declararam prejuízo devido ao boicote. Aproveito para convidar o leitor a participar do boicote de maneira simples: não comprar produtos que tenham o código de barras iniciado por 729.


Com toda esta campanha e pressão internacional fiquei ingenuamente surpreso ao notar que as lojinhas e mercados palestinos aqui na Cisjordânia estão inundados por produtos não apenas israelenses, mas produzidos em Settlements. Ora, se o mundo se mobiliza aos poucos para bloquear os produtos como é que os próprios palestinos não participam do boicote? Para ilustrar o absurdo dos produtos de Settlements, imaginem que os EUA decidem invadir e ocupar o território brasileiro. Depois de algum tempo de negociação, nós brasileiros decidimos aceitar que os EUA mantenham 75% do nosso território. Ainda sim, os estadunidenses ocupam - “ilegalmente”, por mais absurdo que o termo soe neste contexto - com casas e fábricas o resto dos 25% e como se não bastasse, usam o mercado consumidor brasileiro para vender estes produtos. Esta é a realidade da vida econômica daqui e é tão absurda que mesmo organizações pró-Israel propõem o boicote a produtos de Settlements - embora não, evidentemente, de outros produtos israelenses. Por trás dos argumentos israelenses sobre defesa e segurança se esconde a verdade chocante: a ocupação é sobretudo lucrativa. Com a seguida destruição da indústria palestina e sem controlar as próprias fronteiras – impedindo alternativas aos produtos israelenses - a Cisjordânia, para não falar de Gaza, tornou-se um mercado de 2,5 Milhões de consumidores e, devido a taxa de desemprego de mais 50%, de mão de obra baratíssima para a indústria israelense. A economia palestina, devido à ocupação e a maus tratados internacionais, é dependente e subordinada à economia israelense. O desenvolvimento econômico que permitiria às famílias daqui sair da situação de miséria e de dependência da caridade internacional só será possível com o fim mesmo da ocupação e da independência do estado e da economia palestinas. 
Anteontem, em visita ao coração pulsante da vida política e econômica da Palestina ocupada, Ramallah, tivemos a oportunidade de conversar com funcionários da Autoridade Palestina e soubemos mais sobre a campanha de boicote aos produtos advindos de Settlements. A campanha coincidentemente também se chama Karama, dignidade em árabe. Vale a pena passar pelo site para entender sua motivação e para entender a nova lei que proíbe a venda deste produtos em território palestino:


A reação israelense à campanha foi, não surpreendentemente, a de chamar a campanha de “terrorismo econômico” e a reação “democrática” foi a lei que chocou a comunidade internacional e causou polemica entre os próprios israelenses: de acordo com a “Lei de Prevenção de Danos ao Estado de Israel através de Boicotes”, aprovada pelo Parlamento Israelense em 11 de Julho de 2011, qualquer pessoa, instituição ou país que promover boicotes contra empresas israelenses poderá ser processada pela empresa sem que esta tenha de comprovar perdas. Democracia e liberdade de expressão não são preocupações do governo Netanyahu. Se o boicote, como ferramenta pacifica de combate à ocupação, não é considerada legitima, o que resta aos palestino para reagir? 

PS: Vou tender a dividir as postagens por temas, por isso deixo para a próxima postagem a descrição de Ramallah e do encontro muito instrutivo que tivemos com algumas autoridades palestinas sobre a Assembleia das Nações Unidas do dia 21 que deverá tratar do reconhecimento da Palestina como estado. Nesta reportagem da Al Jazeera há um bom resumo do processo, com opiniões contra e a favor.
PPS: Na noite de ontem nos surpreendemos com crianças e mulheres na rua de onde moro chorando pelas calcadas. Fomos explicados que o pai da família, de apenas 38 anos, morreu ontem de uma infecção simples no pulmão. Sem o equipamento necessário para ser atendido em Belém, fez-se necessária sua transferência para Jerusalém. Tendo a ambulância ficado parada no check-point sem ter autorização para seguir, morreu o pai de 8 filhos. O ocorrido, infelizmente, não é exceção. Aqui uma lista de mortes semelhantes entre 2000 e 2006. Aqui, um relatório da respeitada ONG Palestine Monitor, com números e fatos sobre a consequência do bloqueio nos atendimentos médicos a palestinos. Para exemplificar, entre 2000 e 2006 pelo menos 69 mulheres deram à luz em check-points, sem as condições mínimas de higiene ou segurança. Dos 69 casos, 35 recém-nascidos e 5 mães morreram.
PPS: Atualizo a postagem já mais de dois meses depois da primeira publicação. Gostaria de inserir este vídeo que tem relação com o tema, mas visto do lado israelense. De acordo com os Acordos de Oslo produtos israelenses podem ser vendidos em território palestino, mas não o contrário. Este vídeo mostra uma das reações possíveis quando isto acontece. Espero que a descrição do blog sobre a vida comercial no campo e na Palestina, inundada por todos os lados de produtos israelenses, legais e ilegáis, dêem uma dimensão do tamanho da injustiça e da desigualdade nas relações. O vídeo, entitulado "O que surge da mistura de um turista inglês com os Acordos de Oslo", mostra a reação de um supermercado ao encontrar uma caixinha de leite "árabe" entre seus produtos.