quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Segundas impressões

Centro de Nablus


Neste meio tempo a maior parte das impressões iniciais esmaeceram e o bom ritmo da rotina tornou a estadia mais prazerosa. A casa, que divido com outro voluntário, e a própria ONG estão agora muito mais organizadas e os objetivos que me coloquei vindo para cá estão começando todos a ser cumpridos. Dentre os pequenos experimentos que preparei para os jovens daqui, dois já se iniciaram: uma oficina sobre poesia palestina (com o objetivo final de que eles mesmos produzam algo) e outra sobre redes sociais na Internet. A primeira aula com a oficina de poesia foi tão bem que me encheu o coração. Da perspectiva deles, ouvi que eles gostariam de participar da segunda aula e um deles me disse que “Não imaginava que algo assim existisse”.



Oliveiras cortadas por "medidas de segurança

Comecei pelo poeta nacional palestino, Mahmoud Darwish (pronunciado Daruich, não com a pronúncia alemã, da qual riram e me corrigiram meus “alunos”). Reconhecido internacionalmente como poeta e ativista, ele escreveu mais de trinta livros de prosa e poesia e está traduzido em mais de vinte e cinco línguas. Aproveitei versões bilíngues de seus poemas, em árabe e em inglês, para introduzir interpretação de poesia e questões sobre tradução. Os problemas com a língua foram resolvidos pela boa vontade dos alunos mais velhos e de voluntários locais: ajudei com o inglês e fui ajudado com o árabe. Qual não foi minha surpresa ao perceber que a maior parte das crianças sabia três ou quatro estrofes de cor do poema escolhido. Este é um exemplo pequeno da super-politização na qual, para bem ou para mal, está imersa a vida destas crianças. A ONG e o Campo de Refugiados estão cobertos de bandeiras palestinas, imagens de mártires (palestinos assassinados pelo exército israelense) e mensagens internacionais de paz e esperança. O sentimento, ao mesmo tempo de força comunitária – que o poema de Darwish ressalta, “Record, I am an Arab”, não apenas palestino, mas árabe – e de luto, combinado com tristes e solitárias explosões de incitação à violência, são os diferentes ingredientes do caldo cultural da vida no campo. Na entrada, por exemplo, estão penduradas as Chaves do retorno, mas logo em seguida, pichada infantilmente num muro, a mensagem: “Welcome to the Free Deheisha”. O próprio poema de Darwish parece manter esta ambiguidade. Depois de lermos o poema em voz alta algumas vezes, eu em inglês e os alunos em árabe, perguntei pelo significado da desesperada, terrível última estrofe: este é um poema de paz ou de ódio? As respostas foram variadas. Notei, no entanto, que paz apareceu mais entre as respostas dos mais jovens do que dos mais velhos.

Barracos "ilegais" entre a estrada e as colinas

Poema de Mahmoud Darwish recitado em árabe e em inglês

Dias atrás saí para caminhar no Campo, para conhecer melhor o espaço e tentar me localizar. É muito fácil se perder porque as ruas são parecidas e estreitas. Não há avenidas principais, mas vielas que mais ou menos deságuam umas nas outras da ponta do morro até o fim do Campo. Como não há espaço, a maior parte da atividade econômica que existe é comercial. Existem desde senhoras vendendo legumes às sombras das casas, até pequenas padarias onde eles fritam os deliciosos falafeis e assam os pães, até pequenos mercadinhos. O mercado das lan-houses, já há anos conhecido dos moradores da Zona Leste, se inicia aos poucos e o Campo já conta com pelo menos três. O uso principal, pelo que percebi, é a consulta de Facebooks. Nos mercadinhos e pequenas lojas a quantidade de produtos industrializados estrangeiros é surpreendente. O tipo de colonização simbólico-econômica que ocorre aqui é a mesma das grandes periferias brasileiras. As pessoas usam camisetas com escritos em inglês que não entendem. Compram falsificações de marcas conhecidas pelo status. Pagam mais para evitar os chips e refrescos locais (palestinos ou israelenses) e comprar ao invés Pringles ou Coca-Cola com embalagens bilíngues. Os heróis infantis locais – além da flutuante figura trágica dos mártires (sobre os quais pretendo escrever algo, com mais informações, no futuro) – são fornecidos pelo futebol e, em especial, pelo embate entre Real Madrid e Barcelona. Você pode ganhar a confiança de uma das crianças se responder corretamente ao seu time favorito. (Eu tenho uma espécie de bônus nesta pergunta porque venho, afinal, do mítico Barasil). Esta, junto com o “Você é casado?”, costumam ser as duas perguntas que mais ouvimos nos primeiros contatos com as crianças – e com alguns adultos!

"Museu" palestino

Dias atrás fomos convidados para uma viagem à Nablus. Fiquei encantado com a cidade e com a possibilidade de ficar um pouco longe do Campo. A proximidade extrema das casas, e o consequente barulho constante, dão um certo cansaço claustrofóbico. A viagem foi por si mesma bastante instrutiva sobre os impedimentos israelenses à vida Palestina. Foram-nos finalmente mostrados os Settlements ilegais e o Muro da Vergonha, que nos acompanhou por grande parte da viagem e que surgiu muitas vezes pichado, em locais isolados, com os termos “Ghetto” ou “Palestine”. Passamos perto de lugares macabros como o cemitério de presos palestinos, onde eles estão enterrados com números ao invés de nomes nas lápides ou a prisão para crianças palestinas. Passamos por áreas vergonhosas em que centenas de oliveiras antiquíssimas foram cortadas por razões de “segurança” (por estarem perto demais dos Settlements ilegais). Vimos barracos como das piores favelas do Brasil exprimidos entre montes de terra e pedra, no calor escaldante do quase deserto, no meio das estradas, devido à proibição de construção, ilegais, sob perigo constante de desalojamento. Ouvimos, descrito pelo guia, detalhes sobre as diferentes cores dos lenços palestinos, o “roubo” aos poucos de palavras ou culinária árabe e sua inserção sem história na cultura israelense, o furto da oliveira mais antiga do mundo e sua instalação em um Settlement israelense como se ela tivesse nascido lá, a descrição da estratégia israelense de impossibilitar um estado ou um território palestino intercalando áreas B e C (de controle israelense, por razões de “segurança”) entre áreas A (de controle palestino), o círculo de Settlements sendo construído ao redor de Jerusalém e a anexação lenta de Belém a esta última, já roubada quase de uma vez por todas dos palestinos, mesmo em seu lado oriental. Dentre estas descrições, a afirmação algo apaixonada de que o conflito não é religioso ou racial, mas contra qualquer que vier destruir a Palestina ou matar palestinos. “Lembro da minha avó ter me contado que antes de Israel ela tinha vizinhos judeus e cristãos e que nunca houve problema”.

Settlements

Diferentemente de Belém, Nablus é uma grade cidade, centro econômico e político para a vida palestina. Nossa viagem, apesar do caráter sempre político dado pelo guia, se deu mais por passagens turísticas: uma das saunas mais antigas do mundo, uma fábrica de sabonetes palestinos de oliva, uma loja com os temperos mais secretos e misteriosos, uma feira de vegetais frescos e doces.  Fomos instruídos a evitar fotografias dentro do centro velho da cidade. O motivo é a desconfiança dos locais – exceção absoluta na cultura árabe, pelo que percebi até agora – contra turistas. Ao que parece, há algum tempo atrás espiões israelenses, infiltrados na cidade como turistas estrangeiros, passaram informações ao exército que executou um dos maiores massacres da história da Palestina. Vimos a praça onde, na descrição do guia, dezenas de corpos foram empilhados. Pelos corredores dos pequenos corredores espelhavam-se rostos e rostos de jovens em grupos armados de resistência.


Resolucao da ONU n. 194





Na saída da cidade deveríamos visitar uma colônia de samaritanos – aparentemente judeus autóctones que não reconhecem Israel. No meio do caminho eis que fomos surpreendidos por um posto de soldados do exército. Após uma discussão meio em árabe, meio em hebraico, do guia e do motorista com os soldados, fomos informados do veredito: Nós, europeus, brancos, poderíamos continuar a pé a viagem, mas sem os guias árabes. Motivo: serem árabes. As ditas razões de segurança não se confirmam em argumento porque nenhum de nossos passaportes foi verificado, nem mesmo minha mochila, grande o bastante para trazer explosivos, armas ou o que quer que fosse. O racismo, pelo que vi naquele dia, é ainda o critério de segurança utilizado pelos soldados. A arbitrariedade do direito de ir e vir depende, como nos disse algo irônico, algo desesperado o guia, do bom andamento da vida sexual do soldado com sua namorada. A subida ao morro, onde supostamente Abraão teria levado Isaac para o sacrifício e onde está localizado o ponto pelo qual Deus teria iniciado a criação da Terra, todo este espaço sagrado e quase metafísico surgiu não colorido, mas algo em sépia devido ao gosto amargo da lembrança da situação diária dos palestinos que passam por estes postos de controle, por exemplo, para ir trabalhar. 






Ontem perguntei ao diretor da ONG de onde ele vinha. Ele me respondeu o nome de um vilarejo. Depois perguntei onde ele tinha nascido e a resposta foi o Campo de Deheisha. Um dos temas frequentes na poesia palestina é o paradoxo de ser um refugiado. Ter sido expulso simbolicamente de uma origem conhecida através apenas da memória. A maior parte das crianças aqui sabem  exatamente o nome da vila da qual seus avós foram expulsos durante a Nakba. Quando perguntei a um dos pequenos o que ele pensava da vida no Campo fui surpreso com a resposta: “- Eu gosto. Quando crescer quero morar aqui”. Ainda tenho de perguntar e pensar mais, mas a memória da Nakba me parece estar sendo levada na melhor maneira pedagógica e política possível. Não como desalojamento dos israelenses que vivem nas vilas então roubadas dos palestinos, mas como a memória da injustiça cometida. Seguindo, me parece, o imperativo de uma educação emancipada: Para que a tragédia não se repita. Quando foi a vez do menino de perguntar fui tocado na questão até agora principal de minha estadia aqui. A pergunta foi: “Como é o Brasil?”. Quando respondi que muitas comunidades eram parecidas com o Campo ele não acreditou. “Como aqui? O Brasil?”. Minha confirmação foi quase envergonhada. Eu lhe expliquei que muita gente no Brasil é muito rica e que o maior problema social é a desigualdade. Ele entendeu e me mostrou o lugar onde os palestinos “ricos” vivem. Eram, basicamente, casas de classe média, nos padrões brasileiros, do outro lado da rua que separa o Campo de Refugiados de Deheisha do resto da cidade de Belém.




Belém cheira a figos. As figueiras crescem por terrenos abandonados em quase toda a cidade. O vento que atravessa os morros espalha o cheiro pelas calçadas. As frutas e vegetais que compramos nas quitandas são fresquíssimos. Já há muito tempo – talvez desde minha infância no Brasil, em que o verdureiro passava com sua carroça na rua de casa vendendo legumes – não provava o sabor sem agrotóxicos de produtos da terra. Come-se muito bem aqui. A variedade dos sabores é incrível comparada com a escassez de variedade dos produtos. Não consigo afastar a impressão de que andar por aqui é como andar num Brasil que já foi. A gentileza das pessoas com estranhos é só comparável com a mineira, e ainda em desvantagem desta. Todos se cumprimentam pelas ruas, mesmo sem se conhecer, e é comum dar presentes – como um figo ou uma ameixa – a estranhos, após o fim do período de jejum.

Estou, aliás, curioso para ver o Campo depois do período de Ramadã. A vida parece mesmo se alterar radicalmente. Quando nós, os voluntários internacionais, nos escondemos às vezes no escritório para comer alguma coisa ou beber água, e se por acaso alguma criança nos vê, eles nem nos pedem comida, nem nos julgam maus por estarmos comendo, como eu imaginára, mas fazem piadas de nós dizendo que ainda somos criança. Pelo que entendi, apenas depois da infância é que eles ganham permissão para jejuar. Quase um truque pedagógico, portanto, para que eles se orgulhem – como coisa de gente grande – de jejuar. É bem pensado que o Ramadã coincida com as férias escolares, pois, pelo que ouço de barulhos, as crianças costumam ir dormir perto das quatro da manhã, dormem até o meio-dia e comem apenas depois que a mesquita avisa do pôr-do-sol.


Compartilho agora no fim algumas fotos tiradas do Muro da Vergonha que circulam Belém e impedem o direito humano de ir e vir de milhares de palestinos diariamente. Dentre as mensagens internacionais conhecidas, como o Banksy e o Ich bin ein berliner, encontrei um conterrâneo com a mensagem ingênua, mas esperançosa: Gentileza gera gentileza.

5 comentários:

  1. Nossa Tommy, é muito interessante como seu relato fez com que eu me sentisse na Palestina por alguns minutos. Aguardo mais relatos e fotos da sua viagem. Fique bem.
    Abração!

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  2. Tommy, não deixo de me identificar com muitos sentimentos que você colocou nesse texto, as pequenas ruas, o cheiro das frutas nas pequenas barracas ou a estranheza com o Ramadan. No entanto, o Egito passa por um momento, mesmo que talvez simbólico, de liberdade que podemos ver nos olhos de cada jovem que passa suas noites na praça Tahrir levantando a bandeira do seu país. Imagino que a Palestina seja uma das maiores experiências da sua vida e pretendo, postagem por postagem, roubar um pouco disso pra mim ok?! Se cuide! Beijos e saudades.

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  3. Tomaz, me emocionei lendo o seu relato, realmente muito diferente do que chega a nós pelos filtros dos noticiários.
    Ainda mais sucesso em seus projetos.
    Grande abraço, rapá!!

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  4. Tomaz!!!! parabéns menino, tá maravilhoso! escreva mais! quero ver um videocast hein!

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  5. ah: prepare-se pro banquete do Eid el-fitr, o último dia do ramadã!
    Ramadan Kareem!

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