sábado, 20 de agosto de 2011

Primeiras impressoes

O gênero diário se constituí de uma interessante mistura entre monólogo e relato. Nos diários íntimos o escritor converte-se ele mesmo no leitor. No caso dos diálogos íntimos escritos para publicação, o escritor representa um monólogo interior, mas como dentro de um drama: a primeira pessoa converte-se na segunda a quem relata algo que a terceira, o leitor-espectador, irá ler. Esta multiplicidade de pessoas, e de interpretações, torna muitas vezes difícil encontrar o tom certo deste mostrar-se inconsciente, já que nem tudo interessante ao sujeito será interessante ao leitor, mas a falta da perspectiva pessoal fará, por ouro lado, falta ao gênero. Este meio termo deverá se pautar, portanto, mais por experiências individuais comuns e reconhecíveis, do que por impressões estritamente subjetivas (embora sua utilização com moderação, como algum tempero forte na culinária, só tenha a acrescentar ao sabor).


Aulas de inglês
A primeira destas experiências pessoais comuns é o conhecido bloqueio israelense à ajuda humanitária internacional (o exemplo mais conhecido é o dos Flotilla e Aerotilla). Quando saí do avião estava, portanto, algo nervoso devido ao interrogatório. Fui atendido por uma moça simpática que perguntou o motivo de minha viagem. Quando respondi que pretendia ficar um mês em Israel para turismo notei a suspeita e em seguida respondi outras perguntas-armadilha como o nome das cidades ou hotéis nos quais eu me hospedaria. Respondi que normalmente pergunto aos locais sobre os melhores lugares de visita e que, portanto, tinha apenas a primeira cidade e hotel planejados. Como a desconfiança seguiu, mandaram meu passaporte para verificação em algum lugar e fui para um tipo de sala de espera onde fiquei aproximadamente trinta minutos. Um homem veio falar comigo, bastante surpreso por eu ser brasileiro e mesmo assim falar inglês, e me perguntou insistentemente se eu pretendia ficar em Israel e se tinha alguém me esperando fora do aeroporto. Quando confirmei a primeira e neguei a segunda – ambas verdadeiras, aliás – ele me liberou sob a instrução de não deixar Israel. Fiquei com a impressão de que estava sendo observado até finalmente entrar na van que me levaria a Tel Aviv. 


A viagem seguiu com pouquíssimas, mas surpreendentes impressões da vida em Israel. A versão local dos meninos de semáforo é o judeu ortodoxo vendendo itens religiosos. A polícia fortemente armada, em oposição à sua aparição esporádica no Brasil, aparece em locais para nós banais, como um pedágio. Mesmo com a garantia de ser estrangeiro o rápido olhar do sentinela dentro da van incita dois sentimentos: medo e ânsia, devido ao único método possível de busca tão rápida: o racismo. A arquitetura das casas e condomínios surpreende como a mistura do mais moderno com o mais arcaico. Como aquelas casas retangulares esculpidas direto na rocha da montanha, assim as casas israelenses apareceram no caminho dentro de condomínios fechados. A chegada na Jerusalém árabe ofereceu como única comparação possível alguma versão ancestral das feiras populares em São Paulo. Os itens vendidos no meio da calçada, junto ao lixo dos restos e das embalagens (já tão distante do cenário alemão!), os automóveis velozes, caóticos e estridentes nas ruas, o olhar de todas as pessoas sobre minha mochila de viagem e minha mala prateada faiscando no Sol, que com gosto me lembrou do clima de Campinas. Quis provar da culinária árabe nas ruas – tanto dos legumes e frutas crus e bem cheirosos, como dos falafeus fritos e dos frangos à maneira palestina – e me surpreendi ao lembrar da obrigação de jejum do Ramadã. Via-se comida por todos os lados, mas ninguém comia. Imaginava que a lembrança da comida deveria ser evitada, mas, pelo contrário, ela é como que exaltada e, com ela, o sacrifício até o ruidoso pôr-do-Sol. Com o pavor de andar com a mala pelas ruas, caminhei rápido até a velha rodoviária, de onde peguei o ônibus para Belém. Embora o motorista e os outros não falassem inglês, informei onde gostaria de descer e fui entendido. Um terço do tempo da viagem foi gasto na curta saída do centro de Jerusalém. Não sei se não existem pontos de ônibus ou se eles são simplesmente ignorados, em todo caso paramos mais de dez vezes sem cerimônias no meio da rua para a entrada de passageiros que se conheciam mais ou menos todos.


Estava ansioso para a chegada ao Check-Point e quase desci no momento errado quando a maior parte das pessoas no ônibus saíram  O que se passou foi então estranho e difícil de entender. Próximo a uma barreira com os infames muros de separação, todos os passageiros aparentemente trocaram o ônibus por taxis amarelos de placas verdes que os esperavam. Pelo que entendi posteriormente, lá era também um campo de refugiados, no qual a entrada só era possível via taxi palestino. Ao chegar em Belém tive eu mesmo de tomar um destes taxis para o Campo de Refugiados de Deheisha, mas não tive de passar por nenhum Check-Point. Já há mais de dez anos as barreiras que cercavam o campo foram retiradas. Como memória, está o único portão de entrada da época existente, guardado como monumento, onde estão penduradas algumas das chaves do retorno prometido. A primeira impressão foi forte, mas a medida que o taxi adentrou velozmente os becos, através das pessoas e outros carros, tive a impressão clara de estar em alguns locais da própria Zona Leste de São Paulo, algo como dez anos atrás. Alguma versão árabe de Itaquaquecetuba, com uma língua estranha, e pessoas que me eram e para quem eu era completamente estranho, foi a impressão geral do campo no primeiro dia.


Esta comparação algo inofensiva, algo incômoda, se manteve e apresenta questões de difícil solução que talvez valham a pena ser compartilhadas. A situação humanitária delicada que as famílias de Deheisha enfrentam é muito semelhante em grau e qualidade com o de muitas famílias de grandes centros urbanos do Brasil. São efeitos semelhantes de políticas aparentemente distintas. O problema palestino que ainda é ativamente causado pela política israelense encontra seu semelhante na política passiva de abandono do governo brasileiro. Enquanto a atual situação de Deheisha partiu de um campo de refugiados de tendas e cabanas de alumínio preparadas pelas Nações Unidas, a das famílias de Itaquá vêm de um histórico de abandono social pelo menos oito vezes mais antigo que o estado de Israel.


Também a chegada ao Karama foi algo surpreende. A ONG é menor e mais bagunçada do que eu imaginava. A quantidade de crianças e de atividades desenvolvidas tarde no dia – já era depois das seis –, me deixaram, no entanto, empolgado. A situação da casa em que ficarei também deixou algo a desejar, mas a privacidade, e a companhia de um outro voluntário, tornaram-na aceitável. Com o tempo estes detalhes estão sendo resolvidos e escrevo agora já sem problemas estruturais, aproveitando um bom chá e doces árabes ao som do grito das crianças na rua, tarde, já após a meia-noite.



3 comentários:

  1. Pessoalmente fico feliz ter conseguido chegar aí sem problemas maiores.

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  2. tomaz, obrigada pelo seu belo e sincero relato! também fico aliviada em saber que você está bem. :) um beijo grande!

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